Regulamentação do processo estrutural
por Christina Aires Correa Lima de Siqueira Dias
EDIÇÃO 31 - DEZEMBRO 2024
PL 2.646/2020 - Permite a criação de debêntures de infraestrutura - Expansão segundo o princípio do desenvolvimento sustentável - Investimentos para combater a crise COVID-19 - Demanda permanente do setor produtivo por investimento em infraestrutura - Apoio da CNI.
I- Objeto
1- Trata-se de análise jurídica do anteprojeto de lei do processo estrutural no Brasil, elaborado por Comissão de Juristas do Senado Federal.
2- A título de resumo, transcrevo a justificativa da proposta, que traz um breve resumo explicativo de cada um dos seus dispositivos:
O texto aprovado pela Comissão pretende estabelecer, de modo sintético e objetivo, técnicas processuais adequadas para a tramitação do processo estrutural no Brasil. Com efeito, o processo estrutural é uma realidade que se consolidou a partir das disposições da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Processo Civil, oferecendo resultados mais satisfatórios do que as técnicas processuais, individuais e coletivas, até então aplicadas aos litígios dessa natureza.
O anteprojeto consolida, pois, essa experiência, sob três vertentes fundamentais: a) ênfase no consenso e na construção compartilhada de soluções para litígios coletivos complexos; b) ampliação do contraditório e da participação dos grupos impactados no processo; c) atuação estrutural de forma gradual, prospectiva e duradoura, com segurança jurídica para todos os envolvidos.
O art. 1º esclarece que o âmbito de aplicação do processo estrutural é a ação civil pública, de modo que os processos estruturais são processos coletivos. Isso não impede, como refere o art. 14, que as técnicas processuais estruturais sejam utilizadas para outros procedimentos, quando forem adequadas aos seus propósitos. O dispositivo também opta por elencar, de modo exemplificativo, características dos litígios (ou problemas) estruturais, de modo a facilitar a sua identificação e, com isso, delimitar a aplicabilidade da lei.
Essa técnica normativa tem o mérito de evitar a inserção de uma conceituação em lei, o que é contraindicado pelo pensamento acadêmico e tende a causar interpretações divergentes, ao mesmo tempo em que fornece um indicativo de quais são as situações em que o processo estrutural será aplicável. Adicionalmente, fica claro que o processo estrutural tem um caráter residual, aplicando-se às situações em que as técnicas tradicionais do processo comum, individual ou coletivo, não ofertam soluções adequadas.
O art. 2º expressa as normas fundamentais do processo estrutural, com ênfase na consensualidade, na participação ampliada, no respeito às capacidades institucionais e aos limites orçamentários e financeiros das partes envolvidas.
O art. 3º define a competência para o processo estrutural, prestigiando a cooperação judiciária e a reunião de feitos conexos, de modo a evitar julgamentos contraditórios.
O art. 4º contempla medidas de apoio institucional ao magistrado responsável pelo processo estrutural, tendo em vista a complexidade das medidas necessárias ao seu desenvolvimento. Prevê-se, à semelhança do que ocorre na Lei de Execuções Penais, a possibilidade de estabelecimento de um colegiado de 1º grau, a fim de que as atividades possam, também nesse momento, ser distribuídas entre mais de um magistrado.
O art. 5º inicia a descrição do procedimento estrutural propriamente dito, com a petição inicial e a sua análise pelo juiz. Aqui, como já ressaltado desde a versão preliminar do anteprojeto, valorizaram-se a litigância responsável e a máxima utilidade da tutela jurisdicional, permitindo a rejeição de demandas não adequadamente fundadas, mas também evitando que processos meritórios sofram com extinção em razão de discussões processuais periféricas e corrigíveis.
O art. 6º regula o reconhecimento do caráter estrutural do litígio, a fim de imprimir ao processo o tratamento estrutural. Nessa fase, valoriza-se o consenso entre as partes, mas, se ele não existir, é o caso de ampliação do contraditório, a fim de que a decisão seja subsidiada pela maior quantidade de informação possível, de acordo com as necessidades do caso.
Nesse particular, o §4º complementa o aspecto conceitual do tema, expressando que o juiz considerará, para reconhecer o caráter estrutural do litígio, a abrangência social do conflito, a natureza dos direitos envolvidos, as informações técnicas disponíveis, a potencial efetividade e os limites e dificuldades da solução estrutural, assim como todos os fundamentos e argumentos apresentados pelas partes.
O art. 7º propõe o equilíbrio entre estabilidade e mudança. De acordo com o seu teor, o objeto do processo estrutural, uma vez definido, só pode ser alterado por acordo entre as partes. Isso impede processos estruturais que se eternizem por estarem, a cada momento, mudando de enfoque. Por outro lado, considerado um objeto dado, as metas e indicadores podem ser modificados, tanto por acordo, quanto por decisão (sempre observado o contraditório), uma vez que a realidade é mutável e pode contraindicar as providências inicialmente definidas.
O art. 8º lista as técnicas processuais que podem ser utilizadas para a condução de um processo estrutural. Elas estão organizadas em técnicas de participação (incisos I a III), técnicas de gerenciamento (incisos IV e V), técnicas de instrução (incisos VI e VII), técnicas de decisão (inciso VII), técnicas de publicidade (incisos IX e X) e técnicas de cooperação (inciso XI).
O art. 9º expressa o aspecto mais importante do processo estrutural, que é a elaboração e implementação do plano. Particularmente, o seu §3º define mecanismos para que a atuação estrutural não se dê de forma exclusivamente intuitiva ou experimentalista, mas adequadamente planejada, de modo a minimizar eventuais efeitos indesejáveis da sua incidência.
O art. 10 dedica-se às técnicas de gerenciamento e de decisão do processo, especialmente a busca permanente do consenso e a adoção, no que tange às questões sobre as quais este não seja alcançado, de decisões que preservem ao máximo os espaços de liberdade das partes, a fim de que possam seguir dialogando.
O art. 11 contempla uma preocupação central dos acadêmicos, que é a necessidade de dar concretude ao marco de encerramento do processo estrutural. Propõe-se que devem ser definidos indicadores específicos para essa finalidade.
O art. 12 amplia a recorribilidade das decisões do processo estrutural, de modo a evitar que o juízo singular possa, sem revisão, causar prejuízos significativos às partes. A revisão é a garantia de que o processo estrutural, quando não consensual, será passível de supervisão pelo órgão competente.
O art. 13 reconhece a necessidade de que, em termos estatísticos e funcionais, o processo estrutural seja tratado de forma diferenciada. Assim, os integrantes das carreiras públicas que deles se ocupam devem ser adequadamente reconhecidos pelos esforços adicionais que tipicamente empreendem nesses casos.
O art. 14, conforme já mencionado, segue a linha prevista no §2º do art. 327 do Código de Processo Civil, para permitir o trânsito entre técnicas previstas para os diferentes procedimentos especiais. A lógica é que as técnicas previstas nesta lei possam ser utilizadas em outros casos, se a eles forem proveitosas, ao mesmo tempo em que as técnicas processuais de outros procedimentos possam ser transpostas ao processo estrutural, se a ele valorosas.
Finalmente, o art. 15 se ocupa de aspectos relacionados ao âmbito de aplicação subsidiária da Lei, nos tribunais, para o julgamento de recursos e causas de competência originária, assim como aos processos de natureza trabalhista, administrativa, penal e de controle.
II- Análise
3- Na atual fase de análise do anteprojeto, entendo pertinente trazer à baila o entendimento da questão, quais seus objetivos e desafios, antes de propor propriamente alterações nos dispositivos do anteprojeto, o que deve se seguir com a apresentação do projeto de lei e a oitiva de setores e outros interessados, em especial o Poder Público, que não teve representantes na Comissão, formada por membros do judiciário, do Ministério Público e da Defensoria.
4- Ou seja, não foram ouvidos os “réus”, responsáveis por propor, elaborar implementar a política pública, o que a nosso ver é essencial. Ademais, ao se incluir questões de natureza trabalhista, esse tipo de processo, ordinariamente voltado a verificar a efetividade de políticas públicas em matéria de direitos fundamentais, em especial fundados na doutrina do mínimo essencial, pode resvalar no setor empresarial.
5- Tais reflexões se fazem necessárias pela relevância da questão posta, que demanda uma análise da perspectiva do neoconstitucionalismo que legitima o ativismo judicial sob o ângulo da doutrina do mínimo essencial, que muitas vezes se choca com os princípios da separação dos poderes e o princípio democrático, em especial na questão da legitimidade das escolhas e designação orçamentária para políticas públicas definidas pelos Poderes Legislativo e Executivo.
6- Ademais, não raro, para a defesa dos interesses e direitos de um grupo, pode-se desassistir outros em um cenário de escassez de recursos orçamentários para se atender a contento todas as prestações positivas que, em especial, os direitos fundamentais e sociais demandam para serem efetivados.
7- Tal problema de ordem fiscal, a nosso sentir, se agrava com a nova sistemática das verbas destinadas aos parlamentares, que retiram do Poder Executivo valores expressivos do orçamento, que poderiam ser destinados a políticas públicas definidas no orçamento anual, ou no Plano Plurianual, fazendo com que haja uma desconcentração ou pulverização do orçamento, para atender demandas locais dos parlamentares, ao invés de políticas públicas de ordem geral e mais estruturadas.
8- A preocupação não é nova, e com a ADPF 347, o Supremo lançou contornos mais explícitos e estruturados sobre o estado de coisas inconstitucionais, que demandariam remédios estruturais capazes de superar bloqueios políticos e institucionais instalados e aumentar a deliberação e o diálogo institucional sobre causas e soluções (ativismo judicial estrutural dialógico), trazendo à baila o modelo Colombiano, que introduziu esse conceito, conforme consta do voto do Ministro Marco Aurélio, verbis:
O papel do Supremo e o estado de coisas inconstitucional
O requerente alega “estado de coisas inconstitucional”. Segundo a Corte Constitucional da Colômbia, que introduziu o conceito, a configuração pressupõe: situação de violação generalizada de direitos fundamentais, inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificarem a situação e necessidade de atuação, visando superar as transgressões, de uma pluralidade de órgãos.
(...)
(...) Ante as premissas fixadas pela Corte Constitucional da Colômbia para caracterizar o “estado de coisas inconstitucional”, não é possível indicar, com segurança, entre os problemas de direitos enfrentados no Brasil, como saneamento básico, saúde pública, violência urbana, todos que se encaixam nesse conceito. Todavia, as dificuldades em fixar o alcance maior do termo não impedem seja consignada uma zona de certeza positiva: a situação do sistema carcerário brasileiro enquadra-se no que se chama “estado de coisas inconstitucional”.
Importa esclarecer quais implicações, presentes os limites de atuação do Supremo, surgem a partir do reconhecimento de se encontrarem satisfeitos os pressupostos próprios desse estado de coisas.
(...)
A este Tribunal cumpre atuar incentivando a formulação e implementação de políticas públicas.
Permanece reservado ao Legislativo e ao Executivo o campo democrático e técnico alusivo a escolhas, inclusive orçamentárias, sobre a forma mais adequada à superação do estado de inconstitucionalidade, colocando a máquina estatal em movimento e cuidando da harmonia dessas ações.
Conforme destacado na doutrina colombiana, o Tribunal não chega a ser um “elaborador” de políticas públicas, e sim um “coordenador institucional”, produzindo um “efeito desbloqueador” (GRAVITO, César Rodríguez; FRANCO, Diana Rodríguez. Cortes y Cambio Social: Cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Dejusticia, 2010. p. 39).
Eis o que se espera do Tribunal Constitucional, visando suplantar o quadro de inconstitucionalidades do sistema prisional: assentar a omissão das autoridades públicas, incentivar a saída do estado de letargia, determinar a formulação de políticas públicas e provocar a deliberação política e social, assegurando a efetividade das normas constitucionais e a integração institucional.
(...)
A superação do estado de inconstitucionalidade será possível mediante mudança significativa de comportamento, considerados os Poderes Públicos.
Indaga-se: Cabe ao Supremo intervir em políticas públicas atinentes a tema tão dramático, de difícil solução, a envolver aspectos técnicos e orçamentários estranhos?
A resposta é afirmativa. Atua, com base no dever de tutela do mínimo existencial, em diálogo com os outros Poderes, a fim de assegurar a formulação e implementação das políticas necessárias à concretização das garantias constitucionais.
Isso é o que se aguarda do Supremo, e não se pode pretender que se abstenha de intervir, em nome do princípio democrático, quando os canais políticos se apresentem obstruídos, sob pena de chegar-se a um somatório de inércias.
O desprestígio dos presos faz com que agentes políticos não reivindiquem recursos a serem aplicados em um sistema carcerário capaz de oferecer condições de existência digna.
9- Percebe-se, portanto que o Supremo, com o voto do ministro Marco Aurélio optou pela via dialógica do instituto, de forma que o Tribunal não interfira na formulação e implementação de políticas públicas e em escolhas orçamentárias, mas com ordens flexíveis, seguidas de monitoramento da execução das medidas.
10- Conforme se verifica da ementa, houve concordância do Tribunal com o Relator originário, quanto a procedência do pedido para declarar o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro e dar ordens cautelares aos juízes. Houve convergência também na determinação para que a União, os Estado e o DF elaborem planos para superar esse estado, em três anos, julgando improcedentes os pedidos de oitiva de entidades estatais e da sociedade civil, bem como de homologação e monitoramento dos Planos pelo STF.
11- O Voto divergente do Ministro Barroso, determinou: “(i) a necessária participação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ) na elaboração do plano nacional; (ii) a procedência dos pedidos de submissão dos planos ao debate público e à homologação pelo STF; e, (iii) o monitoramento da sua execução pelo DMF/CNJ, com supervisão do STF.”
12- A ação voltou à pauta do STF para a homologação do plano Pena Justa, na sessão virtual de 25/10/24 a 5/11/24, tendo sido suspensa pelo pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes, após o voto do Ministro Barroso, conforme certidão de julgamento, abaixo:
Decisão: Após o voto do Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente e Relator), que: 1) homologava o plano Pena Justa, que deve ter sua implementação iniciada; 2) determinava que os Estados e o Distrito Federal iniciem a elaboração de seus planos de ação, que devem ser apresentados ao STF no prazo de 6 (seis) meses, devendo os planos estaduais refletir os 4 (quatro) eixos do Pena Justa, sua estrutura e metodologia de elaboração, no que for pertinente aos Estados e ao Distrito Federal; 3) determinava que os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, juntamente com os Comitês de Políticas Penais, a União e o DMF/CNJ, deverão orientar o processo de construção dos planos, em diálogo cooperativo com as autoridades estaduais e distritais; e 4) por fim, determinava que o DMF/CNJ deverá enviar para o STF, semestralmente, informes de monitoramento sobre o grau de cumprimento do plano nacional e dos planos estaduais e distrital, no que foi acompanhado pelo Ministro Edson Fachin; e do voto do Ministro André Mendonça, que acompanhava o Relator com ressalvas, pediu vista dos autos o Ministro Alexandre de Moraes. Plenário, Sessão Virtual de 25.10.2024 a 5.11.2024.
13- As ressalvas do Ministro André Mendonça, e a vista do Ministro Alexande de Moraes, se situam no ponto da previsão de implementação de medidas de “compensação penal”, por entender que essas medidas exigem a edição de lei que a preveja. Portanto, “caso se concretize, não decorrerá da decisão proferida pelo Supremo, mas sim de articulações políticas”, e conclui:
36. Por todos esses aspectos, renovando as vênias às compreensões em contrário, sem pretender que o Colegiado se imiscua nos pormenores do plano apresentado, entendo mais profícuo e eficiente que a versão efetivamente homologada se centre nas ações e medidas que estejam dentro do feixe de atribuições constitucionalmente confiadas ao Conselho Nacional de Justiça e ao Poder Executivo — seja da União, seja dos Estados da federação. Daí porque, neste momento, consigno a ressalva já indicada em relação aos itens exaustivamente indicados.
(...)
38. Em relação ao presente caso, me parece suficiente consignar que, para além da possibilidade de determinação da “compensação penal” pela via jurisdicional abstrata, ou exclusivamente pela via legislativa, não se trata de providência que possa vir a ser inserida no ordenamento jurídico por meio de ato meramente regulamentar
14- Tal divergência é relevante, pois lança luzes aos contornos do plano a ser elaborado e homologado pelo judiciário, frente às competências constitucionais dos entes envolvidos, de forma a preservar a separação dos poderes.
15- Destaco, também, que a questão foi objeto de análise jurídica ao PL 8.058/14, que concluiu pelo não apoio à proposta:
3. O tema é polêmico e tem sido fonte de críticas e elogios ao Judiciário: as primeiras, por parte dos interpretativistas, defendem um Poder Judiciário mais contido nas suas funções constitucionais, atendo-se ao que diz a Constituição em sua estrita literalidade; já os aplausos ecoam dos não interpretativistas, corrente daqueles que rogam pela necessidade de interferências do Judiciário nas políticas públicas.
3.1. Não obstante os elogios por propiciar mais um meio para que o cidadão possa ter seus direitos sociais e individuais atendidos, a interferência do Judiciário nas políticas públicas ainda é um fenômeno recente e que desperta desconfiança.
3.2. As críticas à interferência do Judiciário nas políticas públicas concentram-se (i) na movimentação de recursos dos orçamentos públicos que o Executivo é obrigado a fazer por determinação judicial; (ii) na falta de legitimidade do Judiciário para interferir em questões políticas, prerrogativas que são dos representantes eleitos pelo povo; (iii) na institucionalização de uma espécie de "3º tempo", de "prorrogação", para a elaboração das políticas públicas - esgotadas as instâncias Executiva e Legislativa; e (iv) na violação ao princípio da soberania popular, na medida em que os juízes não são representantes da democracia.
4. Sob críticas e elogios, a interferência do Judiciário em políticas públicas deve ser vista como uma ferramenta subsidiária, admissível somente em casos excepcionalíssimos.
4.1. A positivação da interferência do Judiciário - como pretende fazer o PL - legitimaria os magistrados a interferir nos orçamentos públicos,[1] além de propiciar o indesejado efeito de uma enxurrada de ações neste sentido, afogando o Judiciário.
4.2. A CNI defende que as políticas públicas sejam elaboradas e executadas por meio de um planejamento sólido e previsível, para que os investimentos possam ser de fato realizados. Destarte, entendemos que a entidade deva manifestar-se contrária ao PL, mantendo-se coerentemente contrária a interferências supervenientes no planejamento e no orçamento.
5. Inobstante a posição contrária, não devemos fechar os olhos para o crescente fenômeno da interferência do Judiciário em políticas públicas, que vem consolidando novos paradigmas republicanos ainda difíceis de ser enfrentados genericamente, como pretende o PL.
5.1. De fato, não nos parece que a solução para esses paradigmas advirão do PL 8.058/14, aliás, sequer temos certeza se o Poder Legislativo teria competência para arbitrar os conflitos que surgem da interferência do Judiciário nos planos e políticas públicas. Há dúvidas se o PL não feriria o princípio da separação de poderes, bem como a vedação da exclusão, por lei, de apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito.
5.2. Tampouco nos parece que o PL contribua (ou se sequer poderia contribuir) para melhor compreensão do que vem a ser "lesão ou ameaça a direito",[2] deixando a questão em aberto para que o próprio Judiciário delimite tais conceitos. A propósito, nos parece ser isto o que vem ocorrendo, como demonstrado a seguir.
5.3. Sob críticas e elogios, o fato é que o Judiciário tem cada vez mais interferido nas políticas públicas, principalmente nas áreas da saúde e educação, conforme jurisprudência do STF:
"Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional." (RE 410.715 AgR/SP, rel. min. Celso de Mello, j. 22/11/05, 2ª Turma, DJ 3/02/06)
É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. (RE 464.143 AgR/SP, rel. min. Ellen Gracie, j. 15/12/09, 2ª Turma, DJ 18/2/10)
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política 'não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado' (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. Celso de Mello). (ADPF 45-MC/DF, rel. min. Celso de Mello, j. 29/4/04, decisão monocrática, DJ 4/5/04)
5.4. Perceba-se que a jurisprudência constitucional admite a interferência "em bases excepcionais", "sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo" e "se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático".
5.5. As últimas mudanças no controle jurisdicional, em especial o de constitucionalidade, demonstram uma aproximação do Direito Brasileiro com os institutos do common law, caracterizado pela predominância das decisões judiciais como principal fonte jurídica. Neste sentido, e diante de tema tão complexo como o atual, nos parece oportuno e conveniente que seja deixado ao próprio Judiciário a conformação de como se deve interferir nas políticas públicas. O principal benefício dessa opção é permitir que uma questão polêmica seja resolvida gradativamente, a cada decisão judicial, encerrando-se, ao final, uma jurisprudência sólida e confiável, ainda que ausente de representatividade popular.
5.6. A própria Constituição confere ao Judiciário competência para conceder mandado de injunção "sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania".
5.7. Além do mandado de injunção e da jurisprudência infraconstitucional, o próprio Judiciário tem autonomia para adotar mecanismos facilitadores do diálogo com os demais poderes republicanos. Com efeito, o Conselho Nacional de Justiça expediu as Recomendações 31/10 e 36/11, nas quais recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde.
5.8. O próprio Judiciário é capaz de modular sua jurisprudência gradativamente, construindo bases sólidas e confiáveis que delimitem como os magistrados poderão interferir em políticas públicas. Para isso, é imprescindível a "deliberação social plural", como citou o desembargador do TJ/DF, Alvaro Ciarlini, na obra Direito à saúde: paradigmas procedimentais e substanciais da Constituição, na qual analisa a interferência do Judiciário nas políticas públicas sanitárias:
no processo de elaboração da decisão, no transcorrer do respectivo procedimento, o juiz deverá possibilitar a realização de audiências para colher o posicionamento de parcela significativa dos agentes responsáveis pela execução desses programas, registrando nos autos, além da opinio dos técnicos responsáveis por essas ações e serviços públicos de saúde, a manifestação de representantes das respectivas conferências e conselhos que compõem o Sistema Único de Saúde, podendo igualmente possibilitar a oitiva de outros integrantes da sociedade civil.
A sentença a ser prolatada como resultado de uma ação civil pública não deve, portanto, deixar de pressupor a deliberação social plural. Na concretização desses direitos sociais o Judiciário poderá compartilhar com os cidadãos os ônus de suas respectivas escolhas, ao possibilitar que a comunidade social estabeleça o necessário juízo crítico sobre os rumos tomados pelo processo decisório judicial quanto à escolha dos critérios de precedência para atendimento às pretensões judiciais que tenham por objeto a prestação de serviços de saúde. (p. 237-238)
5.9. Outra alternativa - que torna indesejável a interdição do Legislativo - é que o Judiciário e o Executivo pactuem um acordo republicano, estabelecendo as bases procedimentais para tal mister.”
16- Não obstante a posição externada no parecer acima, de deixar que o judiciário em casos excepcionalíssimos, module gradualmente suas decisões, além da preocupação com o princípio da separação dos poderes, ao invés de se positivar em lei a interferência do Judiciário, que “legitimaria os magistrados a interferir nos orçamentos públicos, além de propiciar o indesejado efeito de uma enxurrada de ações neste sentido”, bem como da posição da CNI no sentido de que “as políticas públicas sejam elaboradas e executadas por meio de um planejamento sólido e previsível, para que os investimentos possam ser de fato realizados”, a doutrina e a Comissão de Juristas convocada pelo Presidente do Senado, propõe um processo coletivo, no bojo das ações civis públicas para lidar com problemas estruturais, o que demanda uma nova avaliação do tema frente à proposta da Comissão e o julgamento da ADPF 347.
17- Também serve de material da maior relevância a ser considerado nessa análise, o livro de autoria de Alexandre Vitorino, denominado “Estado de Coisas Inconstitucional e Processo Estrutural” (ed. Gazeta Jurídica – 2020).
18- Em suas conclusões, destaca que o judiciário já vinha decidindo questões típicas de políticas públicas no controle difuso ou em mandados de injunção, como também demonstrado no parecer acima citado, e alerta que a solução colombiana para os casos de mau funcionamento de instituições e burocracias, importada sem maiores reflexões pelo STF na ADPF 347, tem duas fases, sendo que os maiores riscos democráticos e à separação de poderes se encontra na segunda fase a depender dos remédios aplicados pelo judiciário, nas suas palavras:
1) “O primeiro estágio, de certificação da situação inconstitucional, que tem natureza declaratória da existência de um bloqueio institucional que prejudica o funcionamento normal da democracia deliberativa, bem como da violação massiva de direitos fundamentais de certas minorias desarticuladas ou mesmo proibidas de participar do processo democrático;” Tal fase de declaração de mora legislativa ou omissão administrativa não é estranha ao nosso sistema.
2) “A outra fase, de natureza remedial, é a toda evidência, a que pode causar real tensão com o princípio da separação dos poderes e que, tanto na Colômbia e como nos EUA, autoriza, por disposição expressa de lei, a retenção de jurisdição, bem como a adoção de remédios fortes, com prazo determinado, impacto alocativo e substituição de vontade dos poderes eleitos.”
19- Tal análise se confirma na divergência inaugurada pelo Ministro André Mendonça na segunda fase, de natureza remedial, na qual o STF analisa o plano apresentado na ADPF. Como visto acima a oposição à proposta do Relator se dá com fundamento no princípio da separação dos poderes.
20- A preocupação centra-se na déficit de capacidade institucional do Poder Judiciário , que não detém informações suficientes para tomar decisões de impacto transcendente para o que foi decidido, e se mal sucedida, põe em jogo a autoridade da Corte.
21- Também devem ser sopesados os mecanismos democráticos, em especial as eleições periódicas, que permite a substituição dos maus gestores e legisladores, que não se aplica ao Judiciário, que não pode assumir toda a responsabilidade dos poderes constituídos (julgar, legislar e administrar), e sem possibilidade de substituição em caso de erro. Ainda nas palavras de Alexandre Vitorino:
E isso tudo sem dar crédito a uma ideia de teoria política segundo a qual a combinação dessas três formas de poder em um único braço do Estado é precisamente aquilo que os “founding fathers”, na esteira, por sinal de Montesquieu, denominam de tirania, a primeira missão a ser combatida pelo constitucionalismo.
22- Nesse sentido, questiono se o remédio não seria ainda mais inconstitucional? Nessa linha, defende-se a previsão de remédios fracos, declarando-se a mora de outros poderes, com apelos políticos e ao legislador, com recomendações e orientações para um diálogo institucional.
23- Por fim, a obra de Vitorino conclui que o diálogo institucional é uma possível terceira via entre a autocontenção extrema e o ativismo judicial, o que nos parece mais adequado no sistema de check and balances. No entanto, a obra também analisa criticamente a tentativa de implantação da litigância estrutural em sede de processo coletivo, em controle difuso do estado de coisas inconstitucional, destacando que este só deveria ser permitido em situações extremamente graves de bloqueios institucionais. Pondera também que:
Há algumas vantagens da abordagem processual coletiva do estado de coisas inconstitucional, especialmente quanto à prova, à legitimidade para a instauração do debate e a abertura para a realização de negócios jurídicos processuais, que podem diminuir a força dos remédios judiciais e gerar um ambiente hábil para a mediação de interesses conflitantes, tanto no polo dos autores coletivos, como no dos réus.
Ainda assim, fez-se recomendação para que o legislador discipline com rigor e apenas para casos absolutamente excepcionais os remédios fortes. (...)
Disciplinar remédios fracos como regra poderá ser útil para fazer valer a regra geral da preferência da Constituição por políticas públicas elaboradas pelo Legislativo e pelo Executivo, onde repousa, verdadeiramente, a representação popular.
24- O autor ainda se refere a avanços processuais, em especial na mediação que pode ser utilizada, para concluir que: “Ora, a litigância estrutural é uma via útil para o início de um possível diálogo institucional.”
25- Além dessas questões, na ordenação política do Estado, ainda se poderia cogitar da melhor adequação ao princípio da separação de poderes, de um regime parlamentarista, com a queda do Governo, nos casos de inconstitucionalidades estruturais, modelo mais adequado e menos traumático, que o processo de impechment, da nossa ordem constitucional, que não está voltado para essa finalidade específica.
26- Voltando à regulação de um processo estrutural, também há de se ponderar as vantagens da sua inclusão no bojo da ação civil pública, com a competência dos juízos de primeira instância, do que a competência do STF em ações abstratas de controle concentrado de omissão, ou mesmo da ADPF, como ocorreu na 347.
27- Nessa ponderação, está a preocupação trazida no parecer do Dr. Marcos Abreu, da possível pulverização e multiplicação dessas ações, perdendo sua nota de excepcionalidade. Mesmo com as dificuldades dogmáticas, e do fato da sobrecarga que acomete o STF, sua competência para esse tipo de ação talvez garanta uma maior excepcionalidade e contenção nas suas proposições.
28- Por outro lado, em uma análise perfunctória da proposta, que será mais bem avaliada quando da sua conversão em projeto de lei, entendo que a definição dos problemas estruturais está por demais aberta no anteprojeto (art. 1º), o que não se adequa à excepcionalidade e a efetiva existência de bloqueios institucionais que demandariam a intervenção judicial, com vistas a abrir um diálogo institucional.
29- No art. 2º, IX, a possibilidade de imposição de prazos, mesmo que razoáveis, para metas, indicadores e cronogramas, nos parece uma indicação de um remédio forte, que deve ser compatibilizada com a separação de poderes e disposições orçamentárias.
30- Também preocupam os §§ 3º e 4º, do art. 5º, que não permitem ser o processo extinto por defeito de legitimidade ou de capacidade processual adequada da autora, sem antes se dar a oportunidade de outo colegitimado a assumir a demanda. Essa norma vai na contramão de uma legitimidade adequada dos autores coletivos, como ao caráter excepcional do processo, que não deve ser estimulado, com a intimação de possíveis legitimados adequados para prosseguir no processo, quando estes não tomaram essa iniciativa.
31- Também é objeto de preocupação o art. 15, III, ao incluir processos estruturais de natureza trabalhista, o que não nos parece adequado e pode impactar na atividade privada.
32- Apesar dos dispositivos que buscam a construção do consenso e de ter o Ministro Barroso citado o art. 9º da proposta em seu voto na ADPF, entendo que quando da apresentação do projeto de lei deva ser realizada uma análise mais minudente da proposta, frente às premissas colocadas nesse parecer e os seus dispositivos, bem como buscar ouvir os setores e o Pode Público sobre a questão.
III- Conclusão
33- 33. A questão é da maior relevância, impactando no sistema de separação de poderes e traz à baila o crescente fenômeno da interferência do Judiciário em políticas públicas, que vem consolidando novos paradigmas republicanos ainda difíceis de serem enfrentados, devendo ser minudente avaliado o texto trazido pela Comissão de Juristas, caso este venha a ser apresentado como projeto de lei, tendo em vista as considerações constitucionais, políticas e processuais levantadas no parecer, bem como abrindo a oitiva dos setores e do Poder Público, impactados com a proposta.
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Christina Aires Correa Lima de Siqueira Dias é advogada da CNI