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Cancelamento de penalidades no CARF

por Fabiano Lima Pereira

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EDIÇÃO 31 - DEZEMBRO 2024
imagem uma pessoa de teclando e a palavra taxa em um holograma

 

I- Objeto

1- Trata-se de análise jurídica sobre o Projeto de Decreto-Legislativo 355/24 (PDL), que pretende sustar os efeitos dos artigos 2º e 3º da Instrução Normativa da Receita Federal nº 2.205, de 22 de julho de 2024, que dispõe sobre a exclusão de multas, o cancelamento da representação fiscal para fins penais e a regularização dos débitos tributários de que tratam o art. 25, § 9º-A, e o art. 25-A do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.

 

2- Em suma, as razões elencadas para sustar o ato normativo são as seguintes:

Importante registrar que ficou decidido pelas duas Casas legislativas, conforme entendimento político, que, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade, ficariam “excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais”, assim como “os juros de mora de que trata o art. 13 da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995”, desde que haja a efetiva manifestação do contribuinte para pagamento no prazo de 90 (noventa) dias (art. 2º da Lei 14.689/2023).

Surpreendentemente e à revelia do disposto na Lei, a Receita Federal do Brasil publicou a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 2.205, de 22 de julho de 2024, que contraria o disposto na legislação, dispondo que a exclusão das multas não se aplica sobre “multas isoladas”, “multas moratórias” e “multas aduaneiras”. Nesse sentido, a RFB quer restringir consideravelmente o âmbito de aplicação da Lei, que prevê a exclusão de “multas”, ou seja, multas relacionadas ao caso julgado no CARF objeto do voto de qualidade.

II- Fundamentação

 

3- Sob o ponto de vista do processo legislativo constitucional, não há óbice à atuação parlamentar inicial no caso, pois a matéria não se sujeita à iniciativa privativa (CF, Art. 61 e § 1º). Doutro lado, no aspecto federativo, a proposição legislativa tem curso em ambiente parlamentar adequado, Congresso Nacional, e está submetida ao processo legislativo pertinente, pois se trata de ato normativo típico do Poder Legislativo Federal (CF, Arts. 49, V e XI, e 59, VI).

 

4- Inicialmente, no que importa ao caso, vejamos as competências constitucionais autorizadoras da edição de Decreto Legislativo:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

(...)

V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

(...)

XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes

 

5- Além da verificação dos limites do poder regulamentar do Presidente da República (respeito à legalidade), o decreto legislativo não é instrumento de amplo controle de constitucionalidade dos atos do Poder Executivo. Noutras palavras, o decreto-legislativo editado com base no Art. 49, V e IX da CF, não é instrumento de pleno controle de constitucionalidade dos atos do Executivo, mas freio de contenção a eventuais excessos relativos apenas ao poder regulamentar e à delegação legislativa.

 

6- Renovada vênia, fora da verificação de excesso normativo do Presidente da República, o Poder Legislativo não pode sustar decreto presidencial por suposta inconstitucionalidade, sob pena de usurpar função típica do Judiciário e abalar o princípio constitucional da separação dos poderes (CF, Art. 2º). Vale dizer, o exercício da sustação permitida pelo Art. 49, V, da CF deve ser interpretada de forma absolutamente restrita a fim de evitar entrechoques mais profundos entre os Poderes da República. Em suma: o veto legislativo está restrito à verificação dos limites do exercício presidencial do poder regulamentar ou da delegação legislativa a fim de apurar indevida invasão nas típicas funções normativas do Poder Legislativo (CF, Art. 5º, II, 49, V e IX, e 84, IV).

 

7- Salvo melhor juízo, o chamado "veto legislativo", juízo parlamentar de sustação de ato regulamentar exorbitante (CF, Art. 49, V), está adstrito ao juízo de compatibilidade entre a lei e o regulamento executivo ou à atuação além da delegação legislativa (ato ultra vires) a fim de promover respeito à função típica do Parlamento, o que não legitima que o Legislativo promova amplo juízo de constitucionalidade sobre o decreto presidencial a ponto de substituir o Poder Judiciário na função judicante. Nesse sentido, vale a leitura de trecho do voto do ilustre Ministro Celso de Mello na ADI-MC 748:

A Constituição de 1988, que ampliou expressivamente os poderes e as prerrogativas institucionais do Congresso Nacional, investiu-o da significativa competência de fiscalizar o exercício das atribuições regulamentares conferidas ao Poder Executivo, submetendo este órgão do Estado, no plano das relações político-jurídicas, ao Controle de legalidade pelo Poder Legislativo.

Por isso mesmo, em regra de competência extraordinária – cujas origens remontam, em nosso constitucionalismo, à Carta Federal de 1934 (artigo 91, n. II) -, o novo ordenamento constitucional brasileiro atribuiu ao Congresso Nacional, com cláusula de exclusividade, em seu artigo 49, inciso V, o poder de

'(...) sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa'.

(...)

O antecedente histórico dessa regra de competência, como já referido, está na Constituição brasileira de 1934, cujo artigo 91, inciso II, assim dispunha, in verbis:

'Art. 91. Compete ao Senado Federal:

(...)

II – examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, e suspender a execução dos dispositivos ilegais;’

Essa norma constitucional mereceu de PONTES DE MIRANDA (V. “Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”, tomo I, p. 770/771, Editora Guanabara), o seguinte magistério:

'... o inciso II do art 91 constitui atribuição importantíssima. É a primeira vez que adotamos exame dos regulamentos sem o caso concreto, exame da lei em si mesma, em sua existência (...). A Constituição brasileira vai além, posto que só se exerça o poder de exame depois de emitidos. Um pouco função de Alta Corte constitucional, como preconizamos em 1932.

O poder do Senado Federal, no caso do inciso II, é total e definitivo. Pode refugar parte ou todo o regulamento, é um intérprete da Constituição e das leis, a respeito de regulamentos do Poder Executivo.'

A análise do preceito inscrito no art. 49, V, da Carta Federal, permite que nele se vislumbre - a partir da excepcionalidade de que se reveste a sua aplicação – nítida cláusula derrogatória do princípio da divisão funcional do poder. Na realidade, a própria teleologia da norma em questão objetiva, em última análise, viabilizar a possibilidade jurídico-constitucional de ingerência de um Poder (o Legislativo, no caso) na ambiência e no espaço de atuação institucional de outro (o Executivo).

A nota de excepcionalidade atribuída a essa prerrogativa extraordinária deferida ao Poder Legislativo é que torna oportuna a advertência do saudoso HELY LOPES MEIRELLES ('Direito Administrativo Brasileiro', 17ª Ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo, José Emmanuel Burle Filho, p. 598, 1992, Malheiros), para quem “Esse controle deve limitar-se ao que prevê a Constituição Federal, para evitar a interferência inconstitucional de um Poder sobre outro”.

Assiste, pois, em tese, ao Legislativo, o poder de efetuar - com a estrita observância dos limites constitucionais, que condicionam o exercício dessa especial competência – o controle de legalidade da atividade normativa exercida pelo Poder Executivo. E, para esse efeito, é o decreto legislativo o instrumento juridicamente idôneo à concretização parlamentar.

Na hipótese dos autos, a Assembléia Legislativa, com fundamento no art. 53 da Carta estadual, que – tanto quanto o art. 49, V, da Constituição Federal - autoriza a sustação dos atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar, exerceu, mediante ato juridicamente hábil, a tutela da integridade da ordem jurídico-normativa local.

(...)

Os atributos qualificadores da normalidade do ato executivo claramente emergem do conteúdo que ele próprio veicula, na exata medida em que o seu art. 3° consubstancia prescrições de caráter geral, impessoal e abstrato.

A Assembléia Legislativa, portanto, adstringiu-se, no exercício do poder constitucional de controle, a observar o modelo jurídico consagrado pela constituição, que apenas repele, nessa instância de fiscalização político-jurídica, a  possibilidade de supervisão parlamentar dos atos executivos de efeitos singulares, concretos ou individualizados.

DIÓGENES GASPARINI (v. “Poder Regulamentar”, pág. 92, item n. 5, 2ª Ed., 1982, RT), referindo- se ao controle dos atos regulamentares do Poder Executivo por via legislativa, instituído pela Constituição de 1934 - modelo que foi incorporado ao texto constitucional vigente – observa, verbis:

'O controle dos regulamentos, quando editados com excesso de poder, foi outrora exercitado pelo Senado Federal, a que se atribui o poder de examiná-los em confronto com as respectivas leis que intentavam executar. Verificado o abuso do poder regulamentar, eram esse atos gerais, abstratos e impessoais suspensos, ou eram suspensos os dispositivos considerados ilegais.

Tal critério visava a atenuar os inconvenientes de um controle puramente técnico, levado a efeito pelo Poder Judiciário, já que o Senado, por se órgão reconhecidamente político, adotava, no exame, critérios não jurídicos, mas simplesmente políticos.' (grifei)

A tutela da ordem jurídica pelo Poder Legislativo permite-lhe, no contexto da regra constitucional mencionada, sustar a aplicabilidade de atos normativos que, aditados pelo Poder Executivo, qualifiquem-se como manifestações estatais ultra vires, porque excedentes, quer dos limites materiais do poder regulamentar, quer do âmbito da delegação legislativa (ADI 748 MC, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/07/1992, DJ 06-11-1992 PP-20105 EMENT VOL-01683-01 PP-00041 RTJ VOL-00143-02 PP-00510).

 

8- Ainda vale citar precedente mais recente:

A espécie normativa do decreto legislativo não é instrumento capaz de revogar ou alterar as disposições de legislação que discipline matéria constitucionalmente reservada à lei complementar, muito menos quando a essa lei a Constituição Federal limita a iniciativa legislativa. Concluído o processo legislativo, a pronúncia de inconstitucionalidade de lei ou outro ato normativo primário, ainda que fundamentada em vício formal no seu trâmite legislativo, deve se dar por meio de decisão judicial, no exercício do controle judicial e repressivo de constitucionalidade. 3. Consectariamente, o Decreto Legislativo 547/2014, ao sustar a vigência da Lei Complementar Estadual 79/2013 sem que houvesse a hipótese de exorbitação de poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (artigo 49, V, da CRFB/1988), tampouco sua pronúncia de inconstitucionalidade (artigo 52, X, da CRFB/1988), revela-se inconstitucional. Isso porque, a pretexto de preservar sua própria competência, o Decreto Legislativo consubstancia ato normativo modificador da disciplina jurídica da carreira dos integrantes do Ministério Público local, em desobediência às exigências estabelecidas pelo artigo 128, § 5°, da Constituição Federal. 4. O ato normativo impugnado exterioriza os elementos necessários ao cabimento da presente ação, visto que se reveste de densidade normativa primária. [ADI 5.184, rel. min. Luiz Fux, P, j. 30-8-2019, DJE 200 de 16-9-2019.]

 

9- Em sentido similar, vale destacar a ADI 1553, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 13/05/2004, DJ 17-09-2004 PP-00052 EMENT VOL-02164-01 PP-00129 LEXSTF v. 27, n. 313, 2005, p. 61-84. Nesta Diretoria Jurídica, dentre outros, há os Pareceres 435/2015 e 452/2015.

 

10- Contudo, no caso, na exata linha da justificação apresentada, há aparente excesso normativo na IN RFB 2.205/24, que excede o poder regulamentar ao criar uma restrição que não foi prevista pela Lei (em particular, no Art. 25, § 9-A, do Decreto 70.235/72). O § 9º-A do Art. 25 do Decreto 70.235/72 deu tratamento simples e uniforme às multas excluídas em caso de decisão favorável por voto de qualidade, sem distinção de natureza ou espécie. Vale dizer, o dispositivo legal cuidou de gênero e, por isso, não caberia restrição ou seleção de espécies de multa no campo infralegal. Confira-se, visualmente, os textos normativos:

Decreto 70.235/72

Redação da Lei 14.689/23

IN RFB 2.205/24
§ 9º-A. Ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais de que trata o art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º deste artigo.   (Incluído pela Lei nº 14.689, de 2023)

Art. 3º Ainda que decididos por voto de qualidade, os efeitos previstos no art. 2º não se aplicam às seguintes matérias:

I - multas isoladas, à exceção da hipótese descrita no art. 2º, caput, inciso II;

II - multas moratórias;

III - multas aduaneiras;

 

11- Nesse sentido, apesar da possibilidade de discussão jurídica sobre o eventual alcance da sustação (que poderia ficar limitada ao Art. 3º, I, II e III), em tese, o PDL não apresenta impedimento jurídico.

 

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Fabiano Lima Pereira é advogado da CNI

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