Proteção do trabalhador em face da automação e sua regulamentação
Por Roberto da Cruz David
EDIÇÃO 30 - NOVEMBRO 2024
Fruto do encontro de interesses diversos, não raro colidentes, entre capital e trabalho, a Constituição de 1988 buscou estabelecer pontos compromissórios para a construção de uma sociedade mais fraterna, igualitária e desenvolvida.
Não por acaso, já no seu Art. 1º, estabelece os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República reunidos num mesmo inciso, a indicar a necessidade de convivência desses interesses numa sociedade capitalista que pretende implementar um Estado de bem estar social, a incluir a proteção de direitos fundamentais trabalhistas.
Esse propósito conciliatório também se faz presente na declaração de uma série de direitos fundamentais das trabalhadoras e dos trabalhadores no seu Art. 7º com a adoção da técnica das normas constitucionais de eficácia limitada, a exemplo do inciso XXVII, que prevê a proteção do trabalhador em face da automação.
Foi a partir desse panorama que propôs a PGR a ADO 73, em que suscitada a violação, por inércia, do mandamento constitucional definidor desse direito. A questão posta, portanto, diz respeito à (in)nexistência no direito brasileiro de normatividade relativa ao tema.
De pronto, deve-se observar que transformações no mercado de trabalho decorrentes de inovações na dinâmica produtiva não representam novidade. Ao contrário, a cada nova fase de desenvolvimento do sistema produtivo, novas formas de exercício das atividades correspondentes se apresentam, demandando novas habilidades, não raro reorientando o curso do mercado de trabalho.
Com a natural adequação à Quarta Revolução Industrial, o mercado de trabalho enfrentará inevitáveis transformações. Cabe aos Estados, inclusive em cumprimento ao mandamento constitucional que serve de supedâneo à ADO 73, promover as medidas legislativas e executivas correspondentes, o que não impede (ao contrário, parece recomendável) que tais medidas ocorram em regime de cooperação com a iniciativa privada.
É, portanto, no contexto de compreensão do direito à proteção em face da automação sobretudo como proteção à empregabilidade que se deve fazer o cotejo do ordenamento jurídico pátrio, a fim de verificar o estágio atual de produção legislativa a ele relacionada.
O fundamento primeiro a partir do qual se estabelece o bloco normativo protetivo do trabalhador em face da automação como proteção à empregabilidade, portanto intimamente vinculado à promoção de suas potencialidades pela via da educação, se apresenta nos dispositivos constitucionais aplicáveis.
Assim, o texto constitucional firma os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Na mesma toada, erige como objetivos fundamentais da Nação ações destinadas ao acesso tão igualitário quanto possível a todas as pessoas às promessas da modernidade.
De modo mais específico, ao versar sobre os direitos individuais dos trabalhadores, estabeleceu o legislador constituinte a proteção em face da automação.
Por sua vez, ao dispor sobre o direito à educação, o texto constitucional estabelece, no seu Art. 205, relação direta (e intuitiva) entre esse direito e a qualificação para o trabalho, definindo-a como um dever do Estado.
Esse dispositivo constitucional resulta, aliás, perfeitamente adequado ao quanto disposto no Art. 218 da Constituição, que atribui ao Estado o papel de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.
Como se vê, a conexão entre educação e qualificação profissional como uma de suas facetas, devidamente adequada à promoção do desenvolvimento científico nacional associado à inovação, resulta induvidosa da Constituição.
Nesse sentido, o Congresso exerceu seu dever legislativo, aprovando normas que buscam atingir estes objetivos, a exemplo das Leis 10.973/2004 (incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação tecnológica), 12.513/2011 (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, com a finalidade de ampliar a oferta de educação profissional e tecnológica) e 14.533/2023 (Política Nacional de Educação Digital), entre outras.
Vale lembrar, ainda, que o chamado layoff brasileiro, previsto no art. 476-A da CLT, permite a suspensão do contrato de trabalho, por período entre 2 e 5 meses, para participação do empregado em programa de qualificação oferecido pelo empregador. No período, o trabalhador recebe bolsa de qualificação profissional, custeada pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), mantém os benefícios voluntariamente concedidos pelo empregador, e este ainda pode conceder ajuda compensatória mensal.
Ora, se devidamente efetivados esses comandos legais por meio de políticas públicas, parece evidente que o escopo do art. 7º, XXVII, da Carta terá sido concretizado.
Assim, nada obstante se conceba como naturalmente possível (e até desejável) a contínua atenção do legislador para a tramitação e aprovação de normas que aprofundem e tornem ainda mais efetiva a proteção constitucional versada, resulta imperioso concluir-se pela inexistência de mora legislativa na espécie.
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Roberto da Cruz David é advogado da CNI.