O problema das ações ajuizadas por municípios em tribunais estrangeiros
Por Pedro Sutter Simões
EDIÇÃO 29 - SETEMBRO 2024
No mês de julho, a CNI requereu sua participação, na condição de amicus curiae, na ADPF 1178, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram). A ação objetiva declarar a inconstitucionalidade da prática, reiterada em diversas oportunidades por Municípios brasileiros, de ajuizarem processos judiciais perante o Poder Judiciário de outros Estados soberanos sobre fatos ocorridos no Brasil e regidos pela legislação brasileira.
A temática tem repercussão para a indústria brasileira, tendo em vista que se objetiva traçar limites sobre a atividade jurisdicional em ações nas quais diferentes agentes econômicos figuram como réus. O setor industrial é fortemente regulado em razão de externalidades dele decorrentes, o que justifica o estabelecimento de um arcabouço em âmbito nacional para a proteção do bem-estar e a reparação de eventuais danos causados à sociedade. Uma decisão do STF sobre o tema poderá afetar muitas empresas que negociem acordos ou atuem em processos judiciais no Brasil, com repercussões econômicas preocupantes sobre o setor produtivo brasileiro.
A isso se soma um elemento específico das ações a que se refere esta ADPF, ajuizadas por diferentes municípios e patrocinada por escritório de advocacia estrangeiro, que buscam indenização em âmbito internacional por danos decorrentes de acidentes ambientais no Brasil: num contexto de relações econômicas globalizadas, nas quais muitas das empresas que figuram no polo passivo das demandas pertencem ao mesmo grupo econômico das empresas brasileiras, tais ações têm o potencial de impor ao setor industrial uma das mais valiosas indenizações de que se tem notícia no mundo.
A nosso entender, a prática adotada por esses Municípios, por um lado, é inconstitucional, pois renuncia a imunidade de jurisdição de que goza o Estado brasileiro para litigar diretamente perante jurisdições estrangeiras. Como se extrai da noção de soberania, do pacto federativo brasileiro e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, essa é uma prerrogativa exclusiva da União. A autonomia federativa municipal, segundo a Constituição, não lhes confere a prerrogativa de expor o Estado brasileiro como um todo à autoridade jurisdicional estrangeira.
Além disso, a prática desses entes federativos reflete o desprezo à tutela do Poder Judiciário brasileiro e constitui um modelo abusivo de forum shopping. Ao buscar uma jurisdição mais vantajosa para suas pretensões naqueles casos concretos, os Municípios burlam os mecanismos jurisdicionais desenhados pelo Poder Constituinte, com significativos prejuízos à defesa e desrespeito ao devido processo legal.
Assim, são possíveis danos decorrentes da atuação descontrolada em jurisdições internacionais por cada um dos municípios brasileiros. Não se pode ignorar os possíveis efeitos de eventual responsabilização no plano internacional de seus atos para a República Federativa do Brasil, já que a responsabilidade recairá sobre o ente soberano por inteiro. O resultado é um risco sistêmico que afeta toda a jurisdição brasileira, com flagrante lesão à soberania nacional e a criação de um ambiente de insegurança jurídica.
Por outro lado, a prática também acarreta violações a regras e princípios constitucionais que norteiam a atuação da Administração Pública. Causam especial preocupação os prejuízos ao princípio da publicidade, num contexto em que a atuação em juízo da Administração Pública no Brasil é regida por obrigações de transparência. A atuação judicial dos Municípios no exterior, em processos instruídos exclusivamente em língua estrangeira, impede a fiscalização adequada e a participação em tais ações pelas instituições competentes e pela sociedade civil.
Isso num contexto em que as ações judiciais objeto da ADPF 1178 foram ajuizadas em desprezo às inúmeras ações judiciais em trâmite no Brasil e ao esforço conjunto das instituições brasileiras. Como resposta aos desastres ambientais de Mariana e Brumadinho, é importante notar que houve uma resposta estatal multifacetada, mediante a coordenação institucional para a realização de acordos com órgãos públicos, bem como o ajuizamento de uma série de ações judiciais. Tais casos foram acompanhados por diferentes atores do Poder Judiciário brasileiro, resultando em iniciativas de sucesso como o Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão.
Diante desse cenário, é de extrema relevância que o STF solucione um elemento de grave insegurança jurídica nas relações econômicas no País, e reconheça a ilegalidade dessa prática reiterada. Além de evitar repercussões danosas ao setor produtivo nacional, tal medida fortalecerá a União como representante dos interesses do Brasil em âmbito internacional, a soberania do Poder Judiciário como mediador das principais controvérsias de interesse público em território nacional, bem como a probidade na Administração Pública dos entes federativos do país.
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Pedro Sutter Simões é advogado da CNI.