Investimento nos serviços de energia pelas distribuidoras
por Pedro Sutter Simões
EDIÇÃO 29 - SETEMBRO 2024
PL 2.646/2020 - Permite a criação de debêntures de infraestrutura - Expansão segundo o princípio do desenvolvimento sustentável - Investimentos para combater a crise COVID-19 - Demanda permanente do setor produtivo por investimento em infraestrutura - Apoio da CNI.
Projeto para investimento mínimo anual da concessionária de energia destinado a expandir o mercado e ampliar e modernizar as instalações. Potencial reequilíbrio econômico-financeiro contratual. Demonstrativo do impacto orçamentário-financeiro da proposta e indicação da fonte de custeio pendentes.
I- Contexto
1- Trata-se de análise jurídica ao Projeto de Lei 2.817/2024 (PL), que objetiva alterar o art. 16 da Lei 9.427/1996 (lei que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel e disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica), de modo determinar que seja previsto, nos contratos de concessão de energia elétrica, compromisso de investimento mínimo anual da concessionária destinado a atender a expansão do mercado e a ampliação e modernização das instalações vinculadas ao serviço.
1.1- O unvestimento a que se refere o PL não poderão ser inferiores a 25% do lucro líquido da concessionária no ano imediatamente anterior.
2- Veja-se trecho da justificação do PL:
O consumidor de energia elétrica brasileiro sofre rotineiramente com interrupções no fornecimento de energia elétrica e oscilações nos níveis de tensão. Essas inconsistências na prestação do serviço são consequência sobretudo da falta de manutenção e da falta de investimentos nas infraestruturas geridas pelas distribuidoras. A frequência com que tais empresas figuram negativamente no noticiário nacional em razão dos transtornos que causam na vida do cidadão, de norte a sul do país, demonstra que o problema alcança indiscriminadamente todas as regiões do território pátrio.
Essa precariedade nas redes de distribuição de energia elétrica não impede que as concessionárias acumulem, ano a ano, lucros cada vez maiores e mais exorbitantes. Um caso emblemático é o da Enel, grupo de energia que ficou nacionalmente conhecido durante o apagão ocorrido no Estado de São Paulo no ano passado. Conforme dados reportados pela empresa, sediada em Roma, o lucro das operações globais do grupo no primeiro semestre do ano passado foi de 4,25 bilhões de euros, representando um avanço 141,9% ante o ganho de 1,76 bilhão de euros apurado em igual período do ano anterior. No Brasil, em 2022, a Enel registrou lucro de 3,3 bilhões de reais.
Por essas razões, estamos implementando em nosso projeto uma medida mais contundente em favor dos consumidores de energia elétrica. Nossa proposta modifica a redação do art. 16 da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, para determinar que os contratos de concessão preverão obrigatoriamente compromisso de investimento mínimo anual em valor não inferior a 25% (vinte e cinco por cento) do lucro líquido da concessionária no ano imediatamente anterior. Desta forma, estaremos garantindo uma cota mínima adequada de reversão dos lucros das distribuidoras em prol da melhoria dos serviços, com amplos benefícios para toda a sociedade.
II- Análise
II.I- Aspectos formais
3- Não existem impedimentos formais à proposta em termos constitucionais, uma vez que a matéria não se sujeita à iniciativa privativa da Presidência da República (CF, art. 61, §1º).
4- Por outro lado, no aspecto federativo, a proposição legislativa tem curso em ambiente parlamentar adequado, o Congresso Nacional, e está submetida ao processo legislativo pertinente às mudanças pretendidas, pois compete à União, por Lei Ordinária, legislar sobre energia (CF, art. 22, inciso IV).
II.II- Aspectos materiais
5- Do ponto de vista material, em que pese a ausência de inconstitucionalidade e seus bons propósitos em favor da qualidade da prestação do serviço, a proposta parece preocupante.
6- Apesar de não ser clara, a redação proposta pode ocasionar interpretação no sentido da revisão unilateral dos contratos de concessão vigentes pelo Poder Público, e alterar significativamente a estrutura econômico-financeira dos contratos de concessão por meio do estabelecimento de obrigações de investimento. Tal medida poderá encarecer o valor médio da tarifa para os usuários finais, de modo que a decisão sobre o apoio à implementação da política deve ser precedida de análise dos setores interessados da base industrial.
7- Caso efetuadas tais alterações, é preciso alertar que os efeitos econômicos dessas obrigações de investimento proposta não terão sido levados em consideração no momento da celebração dos contratos vigentes, bem como na apresentação de propostas econômicas em licitações para a prestação do serviço pelo regime de concessão. Nesses casos, concessionárias terão a prerrogativa de requerer revisão econômico-financeira dos contratos vigentes no momento da eventual inovação legislativa, por se tratar de exemplo de fato da administração, com fundamento na intangibilidade da equação econômico-financeira dos contratos de concessão assegurada pelo art. 37, inciso XXI, da Constituição.
8- Ademais, tendo em vista a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro, a imposição de tais ônus às concessionárias também deverá acarretar ônus financeiro para o Poder Executivo federal.
9- Entretanto, nota-se que a proposta não apresenta qualquer estudo de viabilidade orçamentária, e não indica a fonte de custeio, apesar de impor uma série de encargos onerosos do ponto de vista econômico ao poder público. Por isso, está em dissonância com o art. 167, § 7º, da CF, segundo o qual “[a] lei não imporá nem transferirá qualquer encargo financeiro decorrente da prestação de serviço público, inclusive despesas de pessoal e seus encargos, para a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, sem a previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou sem a previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio (...)”.
10- Ademais, a ausência de demonstrativo do impacto ocasionado pela proposta contraria o art. 125 da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2023, segundo o qual “as proposições legislativas [...] que direta ou indiretamente, importem ou autorizem redução de receita ou aumento de despesa da União deverão ser instruídas com demonstrativo do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que devam entrar em vigor e nos dois exercícios subsequentes”.
11- Assim, na forma até então apresentada, é provável que haja questionamentos de ordem orçamentária quanto à inconstitucionalidade do Projeto de Lei. Por isso, recomenda-se a elaboração de demonstrativo do impacto orçamentário-financeiro da proposta, bem como a indicação da sua fonte de custeio na Lei Orçamentária Anual.
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Pedro Sutter Simões é advogado da CNI