Comitê Gestor do IBS e processo administrativo tributário
por Pedro Henrique Braz Siqueira
EDIÇÃO 29 - SETEMBRO 2024
PL 2.646/2020 - Permite a criação de debêntures de infraestrutura - Expansão segundo o princípio do desenvolvimento sustentável - Investimentos para combater a crise COVID-19 - Demanda permanente do setor produtivo por investimento em infraestrutura - Apoio da CNI.
Proposta: (i) de estrutura do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, (ii) processo administrativo tributário relativo ao lançamento do IBS, (iii) distribuição para os entes federativos do produto da arrecadação desse imposto, (iv) transição do ICMS, (v) normatização nacional do ITCMD e (vi) alterações legislativas atinentes ao ITBI e à Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública.
I- Contexto
1- Trata-se de análise jurídica ao Projeto de Lei Complementar 108/24 (PLP), cujos objetivos são: a) instituir e estruturação do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS); b) dispor sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS); c) regulamentar a distribuição para os entes federativos do produto da arrecadação do IBS; d) tratar acerca da transição do Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre prestações de Serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS); e) normatizar nacionalmente o Imposto sobre Transmissão Causa mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD); e f) promover inserções e alterações legislativas relativas ao Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e à Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública.
2- Confira-se a síntese da proposta apresentada:
- Institui o Comitê Gestor de IBS (CG-IBS) no âmbito da regulamentação da reforma tributária (EC 132/2023). O Comitê terá natureza de entidade pública sob regime especial, dotada de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, relativamente à competência compartilhada para administrar o IBS.
- Cabe ao CG-IBS definir as diretrizes e exercer a coordenação da atuação, de forma integrada, das administrações tributárias e das procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observadas as respectivas atribuições. O Comitê não é vinculado, tutelado ou está subordinado hierarquicamente a qualquer órgão da administração pública.
- Os Estados, Distrito Federal e Municípios exercerão, de forma integrada, exclusivamente por meio do CG-IBS, as seguintes competências relativas ao IBS: i) editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; ii) arrecadar o imposto, efetuar as compensações, realizar as retenções previstas na legislação específica, e distribuir o produto da arrecadação aos Estados, Distrito Federal e Municípios; e iii) decidir o contencioso administrativo.
- Determina outras competências do Comitê, inclusive atuação juntamente ao Poder Executivo federal, com vistas a harmonizar normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos relativos às regras comuns aplicáveis ao IBS e à CBS.
- O CG-IBS será composto por Conselho Superior, Diretoria-Executiva e as suas Diretorias; Secretaria-Geral; Assessoria de Relações Institucionais e Interfederativas; Corregedoria; e Auditoria Interna.
- No processo administrativo tributário, serão observados os seguintes princípios: i) da simplicidade; ii) a verdade material; iii) da ampla defesa; ii) do contraditório; v) da publicidade; vi) da transparência; viii) da lealdade e boa-fé; viii) - da motivação; ix) da oficialidade; x) da cooperação; xi) da eficiência; xii) do formalismo moderado; xiii) da razoável duração do processo; e xiv) da celeridade da sua tramitação.
- A contagem de prazos processuais considerará somente os dias úteis, excluindo-se o dia do começo e incluindo-se o dia do vencimento. Se suspende o curso do prazo processual nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro.
- O contencioso administrativo tributário instaura-se pelo ato de impugnação em face do crédito tributário formalizado por meio de lançamento de ofício. O prazo para impugnação é de 20 dias, contados da intimação do lançamento de ofício.
- Poderão ser interpostos os seguintes recursos no âmbito do contencioso administrativo: i) Recurso de Ofício; ii) Recurso Voluntário; iii) Recurso de Uniformização; e iv) Pedido de Retificação. O prazo para a interposição de recursos e das respectivas contrarrazões, quando cabíveis, será de 20 dias, contados da intimação do ato recorrido. O prazo será contado em dobro quando a parte vencida for a Administração Tributária.
- A tramitação e o julgamento do processo administrativo tributário poderão ser diferenciados mediante adoção de rito sumário, em razão do crédito tributário inferior ao valor de alçada, fixado em caráter uniforme em âmbito nacional, ou em razão da menor complexidade da matéria, nos termos definidos em ato do CG-IBS, hipótese em que a decisão de primeira instância de julgamento será considerada definitiva, ressalvado o direito de interposição de Pedido de Retificação.
- O contencioso administrativo será estruturado, no âmbito das competências do CG-IBS, nas seguintes instâncias: i) primeira instância de julgamento; ii) instância recursal; e iii) instância de uniformização da jurisprudência. O mandato dos julgadores será de 2 anos, permitida a recondução.
- Trata também da transferência de receitas, de questões sobre a transição com ICMS, pontos relativos ao ITCMD, ITBI e COSIP.
3- Na justificativa oferecida, assinala-se que, com a promulgação da Emenda Constitucional 132/2023 (EC), a qual promoveu a Reforma Tributária ampla sobre o consumo, faz-se necessária a regulamentação de diversos assuntos em matéria tributária, dentre os quais os indicados acima como propósitos da iniciativa.
II- Análise
II.I- Aspectos formais
4- Não há impedimentos jurídicos formais à proposta, que está de acordo com o disposto no art. 61 da Constituição Federal.
5- A proposição tem curso em ambiente parlamentar adequado, Congresso Nacional, e está submetida ao processo legislativo pertinente à mudança/alteração pretendida, pois compete à União, por lei complementar, legislar nessa matéria, nos termos dos arts. 24, inciso I, 48, inciso I, 146, incisos I a III, e 156-B, incisos I a III e §§ 2º, todos da Carta da República, arts. 131, §§ 2º e 5º, e 134, ambos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), e art. 12 da própria EC 132/2023.
II.II- Aspectos materiais
6- Quanto ao mérito, percebe-se que a propositura ora em análise pretende regulamentar o CG-IBS, o processo administrativo tributário referente ao IBS, a distribuição para os entes federativos do produto da arrecadação desse imposto interfederativo, o regime de transição do ICMS e o ITCMD, além de estabelecer acréscimos e modificações legislativas relativas ao ITBI e à Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública.
7- O projeto obedece aos ditames gerais do previsto nos arts. 156-B da Lei Maior, 131 e 134 do ADCT, e encontra-se dividido em três livros.
8- O primeiro deles, que trata da administração e da gestão do IBS, contempla regras atinentes aos quatro primeiros pontos a serem normatizados e acima mencionados.
9- No que tange ao CG-IBS (arts. 2º a 64, PLP 108/24), são previstas disposições sobre: a) suas competências; b) as diretrizes para a fiscalização e cobrança compartilhadas e coordenadas do IBS; c) sua estrutura organizacional; d) a forma de controle externo e) o regime orçamentário; f) suas contratações e a publicidade dos atos normativos dessa Entidade interfederativa; e g) as infrações, sanções e encargos moratórios referentes ao IBS.
9.1- O trato dessa matéria aparenta estar em linha com o disposto no art. 156-B e se encontra dentro do espaço de conformação legiferante conferida pelo constituinte derivado. Não obstante, é possível registrar algumas considerações.
9.2- Uma delas se refere à previsão de que o Distrito Federal não poderá votar nas eleições destinadas a definir a representação dos Municípios no Conselho Superior do CG-IBS (art. 8º, § 9º, PLP 108/24), não obstante esse ente federado seja, com o conjunto dos Municípios, representado por metade dos membros do referido órgão e dentre os quais o Distrito Federal inclusive poderá ter representantes nas chapas eleitas (art. 8ª, inciso II e §§ 3º, inciso I, e 4º, inciso I, PLP 108/24), o que nos parece violar o pacto federativo. A supressão do direito ao voto subverte até mesmo a modelagem federativa que foi concebida com a EC 132/2023.
9.3- Outro ponto que merece atenção é relativo à competência do Conselho Superior do CG-IBS prevista no art. 11, inciso XIII (indicar representantes das carreiras das administrações tributárias, para compor a Comissão Tripartite responsável pela análise dos projetos de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística dos Municípios ou do Distrito Federal). Essa atribuição aparenta ser totalmente estranha à reforma tributária e claramente invade prerrogativa municipal de auto-organização político-administrativa (art. 18, caput, CF).
9.4- É disposto, ainda, que as sanções pecuniárias referentes ao IBS poderão ser cumuladas (art. 56, PLP 108/24). Isso poderá levar a concomitância de multas, o que contraria a jurisprudência do STJ, e até a imposições que ultrapassem o valor do principal, incorrendo assim em penalidades desproporcionais e até confiscatórias, o que, por ser amplamente rechaçado pelo STF, poderá gerar alta litigiosidade.
10- A parte atinente ao processo administrativo tributário referente ao IBS (arts. 65 a 115, PLP 108/24) contém regras de ordem processual (princípios gerais, atos e termos do processo, dispondo nesse particular sobre forma, prazos, intimações e vícios e nulidades), do lançamento de ofício do imposto interfederativo, do contencioso administrativo tributário (trazendo a rito processual a ser observado), e dos órgãos de julgamento.
10.1- Novamente se verifica que se trata de matéria em consonância com o art. 156-B da Carta da República e submetida a ampla conformação do legislador. Da leitura da proposta, inclusive, se percebe que o modelo de processo administrativo fiscal pretendido tem arquitetura e engenharia jurídicas bem similares às existentes atualmente no âmbito federal (DRJ’s e CARF).
10.2- Embora haja alguns avanços (v.g.: processo em meio totalmente eletrônico e prazos em dias úteis), existem disposições que podem gerar problemas (v.g.: redução de prazos para impugnar e recorrer para 20 dias úteis; ausência de regra para reger indisponibilidade do sistema; preclusão em caso de não se alegar nulidade na primeira oportunidade; ausência de nulidade em caso de incorreções ou omissões no ato de lançamento fiscal) e, dessa forma, maiores chances de uma macrolitigância no âmbito administrativo fiscal.
10.3- Ademais, é preciso ponderar que a formatação concebida para o órgão administrativo com função julgadora e uniformizante da jurisprudência do IBS não terá representantes dos contribuintes entre seus membros, o que, embora não contenham vícios materiais de constitucionalidade, tende a constituir modelo com uma visão mais fiscalista.
10.4- Esse contexto, aliado aos fatos de que apenas servidores públicos irão compor os órgãos a serem criados para tratar da harmonização do IBS e da Contribuição sobre Bens e Serviços (arts. 306 e ss., PLP 68/24) e que inexiste previsão de mecanismo processual com vistas a provocação pelo contribuinte de uniformização de interpretação do Comitê Gestor e da RFB em relação aos referidos tributos, parece-nos indicar um futuro no qual são enormes as chances de haver muita discussão judicial.
10.5- Diante desse quadro, talvez seja interessante incluir previsão legal de que discussões levadas ao Poder Judiciário e atinentes ao IBS e CBS terão presunção de relevância para fins de interposição de recurso especial, conforme é possibilitado pelo art. 105, §§ 2º e 3º, inciso VI, da Constituição Federal.
11- O terceiro assunto a ser regulamento no âmbito do PLP 108/24 é a distribuição para os entes federativos do produto da arrecadação do IBS (arts. 116 a 143). Constam disposições preliminares e outras relativas à: i) receita base dos entes da federação; ii) distribuição da receita retida para fins de transição; iii) distribuição complementar para os entes federativos com maior perda de participação relativa na receita; e iv) destinação da receita dos entes subnacionais.
11.1- Como se verifica, trata-se de regramento de direito financeiro, o qual aparenta estar em consonância com a EC nº 132/2023 e, essencialmente, importa a Estados, Distrito Federal e Municípios, de modo que seu exame pormenorizado se revela despiciendo para as empresas da base industrial.
12- O último aspecto do livro que regula a administração e a gestão do IBS se refere à transição do ICMS (arts. 144 a 158), em que são trazidas normas para tratar da caracterização, homologação e utilização do saldo credor do citado imposto estadual, bem como do aproveitamento do ICMS incidente por substituição tributária relativo às mercadorias em estoque até 31/12/2032.
12.1- Não se vislumbram óbices jurídicos ao trecho do PLP 108/24 que dispõe sobre os saldos credores de ICMS em favor dos contribuintes, o qual traz um procedimento para a averiguação desses e possibilita várias formas para a sua utilização (compensação com ICMS ou IBS, transferência a terceiros ou ressarcimento). O prazo para compensação reproduz a regra constitucional, no entanto, a fixação do prazo para ressarcimento em 240 meses revela-se demasiadamente longo, o que pode não ser de interesse das empresas da base com saldos acumulados, a recomendar a tentativa de diminuição desse último, em especial para os créditos de baixa monta.
12.2- Igualmente não existem impedimentos legais à parcela da propositura que normatiza a uso dos créditos de ICMS-ST decorrentes de mercadorias em estoque. Inclusive, previsão nesse sentido evita uma oneração desmedida dos bens, pois prestigia a não cumulatividade, técnica que é comum tanto ao ICMS quanto ao IBS.
13- O Livro II do PLP 108/24 possui regras gerais atinentes ao ITCMD, tais como fatos geradores, hipóteses de imunidade e não-incidência, aspecto temporal da norma-padrão de incidência desse imposto estadual, base de cálculo, alíquota, contribuintes, responsáveis tributários, sujeito ativo, fiscalização e lançamento.
15.1- Por não existir um marco legal do ITCMD, imposto criado pela Carta Política de 1988, é salutar que sejam estipuladas normas aptas a darem contornos gerais a esse imposto, como predita o art. 146, inciso III, alínea “a”, da Lei Maior, e a atenderem ainda as alterações trazidas pela EC 132/2023, mais precisamente pela modificação do inciso II do § 1º do art. 155 da Constituição e de acréscimos dos incisos VI e VII ao referido dispositivo constitucional.
15.2- Embora a tributação pelo ITCMD seja de maior importância para as pessoas físicas, vale frisar que a modelagem pretendida não parece conter impropriedades jurídico-constitucionais, na medida em que as principais novidades (alteração da sujeição ativa no caso de bens móveis, títulos e créditos, que passa a ser o Estado de domicílio do de cujus, progressividade desse ITCMD, regulamentação da tributação de doação e heranças no exterior, bem como de transmissões envolvendo quotas ou participações societárias) são passíveis de conformação legal.
16- Por fim, no que tange aos acréscimos e modificações legislativas relativas ao ITBI e à Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública, algumas das disposições são atualizações normativas que o Código Tributário Nacional demandava vis-à-vis a Carta da República desde a promulgação desta, enquanto outras configuram-se como regulamentação necessária diante da EC 132/2023, que aumentou o campo de incidência da citada contribuição.
16.1- Não obstante, é preciso frisar, no que tange ao ITBI, que o projeto reverte lógica existente quanto à distribuição das cargas probatórias para fins de determinação do valor da venda, na medida em que atribui ao contribuinte o ônus de demonstrar que o valor de referência da transmissão do bem, atribuído pela Administração Tributária competente, está incorreto.
16.2- Essa mudança tende a reestabelecer a litigiosidade que existia em relação ao referido imposto municipal, e que parecia ter sido encerrada com o julgamento do REsp 1.937.821 (Tema 1113/STJ).
III- Conclusão
17- Conclui-se, portanto, que, ressalvados alguns pontos que merecem aprimoramento para evitar discussões quanto à constitucionalidade e um alto nível de litígio judicial, devidamente apontados no corpo do presente expediente, não há óbices jurídicos ao PLP 108/24.
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Pedro Henrique Braz Siqueira é advogado na CNI