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Empate na votação no CARF

Por Fabiano Lima Pereira

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EDIÇÃO 23 - JULHO 2023
imagem de uma estátua representando o resultado da votação no CARF

 

1.Aspectos constitucional-formais atendidos: iniciativa legislativa permitida e processo legislativo adequado. 2. Embora sem graves impedimentos jurídicos, após avaliação sobre o ponto da classificação dos contribuintes (Art. 3º do PL), pela negativa de apoio.

I- Contexto

1- Trata-se de análise jurídica do Projeto de Lei (PL) 2384/2023, de autoria do Poder Executivo, que disciplina a proclamação de resultados de julgamentos, na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), dispõe sobre conformidade tributária no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda e modifica o contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade.

II- Análise

II.I- ASPECTOS FORMAIS

2- Inicialmente, sob o ponto de vista do processo legislativo constitucional, não há óbice à atuação parlamentar inicial no caso, pois a matéria não se sujeita à iniciativa privativa (CF, Art. 61 e § 1º).

2.1- Ademais, destaque-se que o PL não altera as funções ou incrementa atribuições do CARF. Apenas trata de questão pontual referente à forma de deliberação do Órgão a fim de incrementar paridade e isonomia democrática na forma de votação. Noutras palavras, sem desfigurar ou transformar o CARF em coisa diversa do que ele é, o PL apenas altera/restabelece o critério de proclamação do resultado nos casos de eventual empate.

3- Doutro lado, no aspecto federativo, a proposição legislativa tem curso em ambiente parlamentar adequado, Congresso Nacional, e está submetida ao processo legislativo pertinente à mudança/alteração pretendida, pois compete à União, por Lei Ordinária, legislar nessa matéria (CF, Art. 22, I).

II.II- ASPECTOS MATERIAIS

4- Em substância, o PL é reprodução da Medida Provisória (MP) 1160/2023, que teve trâmite congressual paralisado em razão de impasse político sobre a composição/funcionamento das Comissões Mistas.

5- Nesse sentido, os pontos mais sensíveis da proposta já foram analisados em outra oportunidade, sendo seus comentários reproduzidos a seguir:

“RESTABELECIMENTO DO VOTO DE QUALIDADE NO CARF

A medida provisória restabelece o voto de qualidade no CARF. Isto se dá com a redação do seu art. 1º determinando que na hipótese de empate o resultado será proclamado na forma do § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235/72, que fala no voto de qualidade, e por meio do seu artigo 5º, que revoga o art. 19-E da Lei nº 10.522/2002. Esse artigo, acrescentado pela Lei nº 13.988 /2020, extinguira o voto de qualidade. Os motivos apresentados pelo Governo para justificar a volta do voto de qualidade, se examinados com cautela, já são fortes o suficiente para que não se concorde com a medida. Afirmou o Ministro da Fazenda que o fim do voto de qualidade teria levado a um elevadíssimo represamento de feitos no CARF. Na mesma oportunidade, a Ministra do Planejamento afirmou que se tivesse essa informação ao tempo que votara pelo fim do voto de qualidade, teria outro entendimento. Minutos depois, ao responder a indagação de uma repórter, o Secretário da Receita Federal afirmou que o represamento se deu porque a Receita Federal retardou o julgamento de matérias que entendia haver risco de reversão do entendimento. Isto deixa clara uma ausência de neutralidade dos julgadores, ou ao menos dos presidentes dos órgãos julgadores, responsáveis por elaborar a pauta.

Outro ponto relevante é que a medida foi anunciada no âmbito daquelas destinadas a obter receita. Ora, o voto de qualidade é dado pelo presidente do órgão julgador no CARF e todas as presidências não apenas são cargos privativos de conselheiros fazendários, mas também constituem função de confiança. Os presidentes, ao contrário dos demais conselheiros, não têm mandado, eles ocupam o cargo enquanto forem de confiança do Ministro.

Ora, se o fim do voto de qualidade é anunciado como medida para ‘fechar as contas’ e se o voto de qualidade é exercido por servidores em função de confiança, para a qual podem ser livremente nomeados e da qual podem também ser livremente exonerados, resta evidente a antinomia entre a medida e qualquer noção de devido processo legal administrativo.

Assim, ao nosso ver, deve se buscar a não conversão em lei dos artigos 1.º e 5.º da Medida Provisória.

PODERES PARA A RECEITA FEDERAL FAVORECER A SOLUÇÃO AMIGÁVEL DE CONFLITOS

O art. 2.º da MP confere à RFB poderes para ‘disponibilizar métodos preventivos para autorregularização de obrigações principais ou acessórias relativas a tributos por ela administrados’, bem como ‘estabelecer programas de conformidade para prevenir conflitos e assegurar o diálogo e a compreensão de divergências acerca da aplicação da legislação tributária’.

Trata-se, na verdade, de delegação de ação normativa. A lei delega para a RFB a criação das normas que irão criar os ‘métodos preventivos para a autorregulamentação’ e os ‘programas de conformidade’.

Veja-se que, em parte, a matéria pode ser considerada como já disciplinada em lei, notadamente a denúncia espontânea. Mas essa figura, segundo jurisprudência firme, abrange apenas a obrigação principal, não a acessória. Assim, se o particular fizer a autorregularização de obrigação acessória e ficar dispensado de multa, ou a tiver reduzida, haverá anistia, total ou parcial, sem previsão em lei, violando o requisito previsto no art. 150, § 6º, da Constituição.

Para que isto não ocorra, a própria lei deverá estabelecer a possibilidade de autorregularização e o afastamento total ou parcial das multas por descumprimento de obrigação acessória, deixando para a RFB a mera regulamentação e não a criação, a edição de norma jurídica primária.

Isso também pode ser dito sobre os ‘programas de conformidade para prevenir litígios’. A ideia aqui parece ser a de criar mecanismos de consulta prévia nos moldes dos advanced pricing agreements sobre preços de transferência. A base legal hoje existente no Brasil é a de consultas sobre a legislação tributária aplicável a fato determinado (Decreto nº 70.235/72, art. 46). A evolução é salutar, mas não cabe conceder o poder normativo primário à Receita Federal, apenas, e no máximo, a discricionariedade técnica para regular.

(...)

AUMENTO DO VALOR MÍNIMO DOS PROCESSOS PARA CABER RECURSO AO CARF

O art. 4.º da MP majora para mil salários-mínimos o valor que define o contencioso de baixa complexidade, para o qual não caberá recurso ao CARF. Mil salários-mínimos corresponde hoje a mais de um milhão e trezentos mil reais. Esse valor significará para a imensa maioria dos brasileiros a impossibilidade de exercer o direito ao duplo grau administrativo. Aqui cabe lembrar que dentre os fundamentos da súmula vinculante 21 do STF está a ADI 1.976. Lá é textual ao menos nos votos dos Ministros Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski a existência de direito ao duplo grau no processo administrativo e o óbice representado por depósito ou arrolamento. Aqui não há óbice, mas mera vedação ao duplo grau em patamar muito significativo para a maior parte dos brasileiros. A inovação nos parece incompatível com os precedentes que resultaram na súmula vinculante 21.”

6- Acrescento que a MP 1160/2023 consta da Agenda Legislativa da CNI e o setor industrial definiu manifestação divergente ao apoio. Vejamos:

“Embora a medida provisória delegue poderes à Receita Federal para favorecer a solução de conflitos por meio de métodos alternativos, a reinstituição do voto de qualidade em benefício da Fazenda nos casos de empate nos julgamentos do CARF representa potencial prejuízo aos contribuintes nas discussões de matérias tributárias em processos administrativos fiscais.

O empate no julgamento evidencia que o tema avaliado no processo é controverso e o questionamento do contribuinte é razoável. Assim, o contribuinte não deve ser punido com uma decisão pelo voto de qualidade cujo desempate é historicamente contrário ao contribuinte, visto que é sempre da competência de representante do Fisco.

Outro ponto negativo é o aumento do valor de alçada para recurso voluntário ao CARF, que passou de 60 para 1.000 salários-mínimos. A alteração pode prejudicar as empresas de menor porte, uma vez que restringe o direito de defesa ao impossibilitar o exercício do direito ao duplo grau administrativo. Ademais, a medida traz o risco do aumento da judicialização do processo administrativo fiscal, em contradição ao objetivo de diminuir a quantidade de litígios.

Além disso, a Lei nº 13.988/2020, que determinava a inaplicabilidade do voto de qualidade, é recente e essa mudança procedimental repentina e abrupta gera insegurança jurídica. É importante destacar que as decisões do CARF devem se pautar na justa avaliação da matéria tributária e não no seu impacto arrecadatório.”

7- Ademais, cabe destacar que o Conselho Federal da OAB ajuizou a ADI 7.347 com pedido de inconstitucionalidade da reinstituição do voto de qualidade prevista na MP 1.160/23. A CNI pediu ingresso como amicus em favor do deferimento da liminar e da tese da inicial.

8- A principal novidade do PL 2.384/23 é o art. 3º, que trata da classificação de contribuintes de acordo com o grau de conformidade tributária e aduaneira perante a RFB/MF.

9- O dispositivo estabelece que a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, vinculada ao Ministério da Fazenda, será responsável por classificar os contribuintes de acordo com o nível de conformidade tributária e aduaneira de acordo com os seguintes critérios:

a) Regularidade cadastral;
b) Regularidade no recolhimento dos tributos devidos;
c) Aderência entre escriturações ou declarações e as ações praticadas pelo contribuinte;
d) Exatidão das informações prestadas nas declarações e escriturações;
e) Outros critérios definidos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda.

10- Essa classificação dos contribuintes pode ser utilizada como critério para incluí-los em programas de conformidade.

11- No âmbito desses programas, a administração tributária adotará medidas graduadas com base na classificação do contribuinte, com o objetivo de promover a autorregularização dos créditos tributários antes do lançamento. Essas medidas incluem:

a) Procedimento de orientação tributária e aduaneira prévia;
b) Não aplicação de eventuais penalidades administrativas;
c) Prioridade de análise em processos administrativos, inclusive em relação a pedidos de restituição ou ressarcimento de direitos creditórios;
d) Atendimento preferencial na prestação de serviços presenciais ou virtuais.

12- Com adaptações, o dispositivo reproduz a ideia do Cadastro Positivo Fiscal da PGFN, que está previsto nos Arts. 17 e 18 da Lei 14.195/2021.

“Em síntese, as novas regras para a concessão da gratuidade de justiça no processo do trabalho trazem parâmetros razoáveis para a fixação da miserabilidade, inibindo demandas abusivas. Ademais, garantem isonomia entre as partes e maior estabilidade nas relações, coadunando-se com a regra constitucional de garantia aos necessitados da assistência integral.”

13- Em geral, o objetivo desses cadastros fiscais positivos seria estimular a cooperação entre Fisco e contribuintes numa tentativa de mudar a perfil conflituoso dessa relação.

14- Contudo, eventuais abusos no uso da ferramenta podem ensejar riscos aos contribuintes.

15- Doutro lado, a medida parece redundante, pois duplica a existência de espécies de “cadastros fiscais de classificação dos contribuintes” quando, simplesmente, bastaria conferir à RFB acesso institucional regrado ao cadastro fiscal positivo que já foi criado no âmbito da PFGN (vide, Art. 17, par. único, da Lei 14.195/21) ou aprimorá-lo de forma atender as necessidades das duas instituições sem quaisquer “flexibilizações” ou prejuízos ao sigilo fiscal (CTN, Arts. 198 e 199).

16- Aqui, em verdade, a duplicidade de cadastros pode ter origem em alguma disputa político-corporativa entre RFB e PGFN (tais cadastros podem ser usados, por exemplo, para conferir tratamento diferenciado em transações tributárias etc.).

17- Por fim, cabe destacar alguns pontos de atenção:

a) Art. 3º, inciso V: permitir à própria RFB a definição de outros critérios pode representar insegurança jurídica, porque simples alterações casuísticas, por atos administrativos, podem impactar o perfil/classificação dos contribuintes no cadastro;

b) Art. 3º, parágrafo 4º, que determina que a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda regulará a divulgação da classificação dos contribuintes. Embora a divulgação de determinadas informações fiscais não seja coberta pelo sigilo fiscal (CTN, Art. 198, § 3º), a divulgação ampla e irrestrita desse tido de classificação pode representar certo constrangimento. Por isso, o modelo da PGFN, que confere acesso à classificação apenas ao próprio contribuinte, parece ser mais seguro e poderia ser uma opção menos invasiva (vide, Art. 18, par. único, da Lei 14.195/21).

18- Além dos impedimentos e inconveniências jurídicos apontados, as alterações legislativas propostas no projeto não contêm graves impedimentos jurídicos no tocante ao mérito, porque, em geral, cuidam de matéria sujeita à conformação legislativa ordinária.

 

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Fabiano Lima Pereira é advogado da CNI

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