Rescisão da coisa julgada tributária contrária à decisão em controle concentrado ou repercussão geral do STF
Por Pedro Henrique Braz Siqueira
EDIÇÃO 22 - ABRIL 2023
PL 2.646/2020 - Permite a criação de debêntures de infraestrutura - Expansão segundo o princípio do desenvolvimento sustentável - Investimentos para combater a crise COVID-19 - Demanda permanente do setor produtivo por investimento em infraestrutura - Apoio da CNI.
1. Proposta que visa submeter a desconstituição da coisa julgada tributária que contrarie a decisão proferida em controle concentrado ou em sede de repercussão geral ao ajuizamento de ação rescisória. 2. Aspectos constitucionais e formais atendidos: iniciativa legislativa permitida e processo legislativo adequado. 3. Iniciativa sem óbices jurídicos, a qual confere maior proteção à coisa julgada, direito fundamental esculpido art. 5º, inciso XXXVI, da Carta Política de 1988. 4. Hipótese de reversão legislativa da jurisprudência para impor verdadeira modulação de efeitos às decisões proferidas nos Temas 881 e 885 da repercussão geral, técnica que o STF deixou de aplicar por maioria de votos nos recursos extraordinários julgados. 5. Embora cabível por força do art. 2º da Constituição Federal e conforme entendimento do STF, a correção legislativa jurisprudencial pode enfrentar dificuldades e críticas durante o curso do processo legislativo, bem como ser alvo de futuro questionamento quanto à constitucionalidade de alteração no sentido pretendido. 6. Entendimento de que a CNI pode emprestar seu apoio ao PL 580/23. Registro dos alertas feitos no corpo do presente expediente para fins de conhecimento da Consulente.
I- Contexto
1- Trata-se de análise jurídica do Projeto de Lei (PL) 580/23, cujo objetivo é submeter a desconstituição da coisa julgada tributária que contrarie a decisão proferida em controle concentrado ou em sede de repercussão geral ao ajuizamento de ação rescisória:
“Art. 1º Os arts. 966 e 1040 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, o Código de Processo Civil, passam a vigorar com a seguinte redação:
Art. 966. …
IX - contrariar decisão do Supremo Tribunal Federal que declara a constitucionalidade de lei tributária, proferida em controle concentrado de constitucionalidade ou em sede de repercussão geral.
Art. 1040. …
V - a eficácia, em relação ao detentor de decisão de mérito, transitada em julgado, em sentido contrário à decisão que declara a constitucionalidade de lei tributária, proferida em sede de repercussão geral, deve observar o disposto no inciso IX do art. 966 desta Lei.
Art. 2º O art. 28 da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 28. …
§ 1º A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos, observado o § 2º, e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
§ 2º A eficácia, de que trata o § 1º, em relação ao detentor de decisão de mérito, transitada em julgado, em sentido contrário à decisão que declara a constitucionalidade de lei tributária, proferida em controle concentrado de constitucionalidade, deve observar o disposto no inciso IX do art. 966 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.”
2- Na justificativa oferecida faz-se menção ao julgamento dos Recursos Extraordinários 949.297 (Tema 881) e 955.227 (Tema 885), no qual o STF compreendeu que as decisões transitadas em julgado nas quais tenha havido a declaração incidental de inconstitucionalidade de tributo podem ter seus efeitos cessados em virtude de posterior decisão da própria Suprema Corte, em sede de controle concentrado ou na via difusa com repercussão geral, que declare a constitucionalidade do tributo ou da exigência.
3- Aponta-se que a mudança abrupta do cenário jurídico, diante de interrupção automática da coisa julgada, é cenário nefasto para a segurança jurídica, previsibilidade e não surpresa dos contribuintes que obtiveram, para si, decisões judiciais transitadas em julgado que lhes foram favoráveis pela declaração de inexistência de relação jurídico-tributária ou inexigibilidade de tributo.
4- Registra-se que o STF sempre conferiu ao instituto da coisa julgada uma proteção especial, bem como que a ausência de modulação dos efeitos das decisões prolatadas nos Temas 881 e 885 da repercussão geral não priorizou a estabilidade, confiabilidade e previsibilidade que os particulares esperam das ações estatais, o que potencializa as chances de prejuízos financeiros e litigiosidade.
5- Nesse contexto, propõe-se que seja submetido à ação rescisória a desconstituição da coisa julgada tributária contrária à decisão proferida em controle concentrado ou em sede de repercussão geral, que entenda pela constitucionalidade de determinada exação.
II- Análise
II.I- ASPECTOS FORMAIS
6- Não há impedimentos jurídicos formais à proposta, estando o projeto de acordo com o disposto no art. 61 da Constituição Federal.
7- A proposição tem curso em ambiente parlamentar adequado, Congresso Nacional, e está submetida ao processo legislativo pertinente à mudança/alteração pretendida, pois compete à União legislar nessa matéria, nos termos dos art. 22, inciso I, da Carta da República.
II.II- ASPECTOS MATERIAIS
8- Quanto ao mérito, percebe-se que a propositura visa garantir que as decisões judiciais transitadas em julgado em matéria tributária somente possam ser desconstituídas ou invalidadas por intermédio do instrumento jurídico-processual adequado da ação rescisória.
9- A temática é recente e, embora seja preciso aguardar a publicação dos acórdãos atinentes ao julgamento conjunto para se ter uma dimensão plena dos desdobramentos e consequências do entendimento firmado, nos parecem necessários os seguintes esclarecimentos e ponderações:
a) o RE 949.297 (Tema 881) foi julgado em conjunto com o RE 955.227 (Tema 885). Em ambos se objetivou delimitar o alcance da coisa julgada no âmbito das relações tributárias de trato sucessivo na hipótese de o contribuinte ter em seu favor decisão judicial transitada em julgado que declare a inexistência de relação jurídico-tributária, ao fundamento de inconstitucionalidade incidental de tributo, por sua vez declarado constitucional, em momento posterior.
A diferença reside no fato de o primeiro recurso extraordinário (Tema 881) tratar de declaração posterior de constitucionalidade na via do controle concentrado e abstrato exercido pelo STF, ao passo que no segundo (Tema 885) o controle de constitucionalidade seria exercido de forma difusa;
b) a tese final fixada em ambos os Temas foi a seguinte: "1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo";
c) não houve qualquer modulação de efeitos na hipótese da CSLL, tributo tratado nos processos;
d) desse cenário conhecido, pode-se depreender que uma decisão em ação direta (ex.: ADI, ADC etc.) ou em recurso extraordinário com repercussão geral pela constitucionalidade de uma dada incidência tributária, fará cessar os futuros efeitos de coisa julgada individual que a contrarie e a Fazenda Pública não precisará ajuizar ação rescisória ou revisional para desempenhar as atividades inerentes à tributação de competências vindouras;
e) apenas em relação aos fatos anteriores à publicação da ata de julgamento de ação direta ou de recurso extraordinário com repercussão geral é que haveria a necessidade de propositura de ação própria que desconstitua a coisa julgada e, com isso, permita a cobrança de competências passadas, sempre se respeitando o prazo prescricional para esse ajuizamento e outras causas autônomas que levem à extinção do crédito tributário (v.g.: decadência, prescrição etc.);
f) por sua vez, numa hipotética decisão proferida em recurso extraordinário sob o rito da repercussão geral julgado futuramente, em que se declare a constitucionalidade de uma dada incidência tributária cuja relação seja de trato continuativo, todas as coisas julgadas individuais em sentido diversos, em que tenha se firmado o entendimento pela inconstitucionalidade da tributação, deixaram de emanar seus efeitos, devendo os beneficiários dessas decisões voltar a recolher o tributo em questão;
g) ademais, caso não haja modulação de efeitos dessa decisão hipotética, poderá surgir para a Fazenda Pública interessada o direito de propor ação rescisória (art. 535, inciso III e §§ 5º e 8º, do CPC) com vistas a desconstituir o título judicial individual e favorável a um contribuinte e possibilitar a cobrança de competências passadas.
10- Trazidas essas considerações, feitas antes da publicação dos acórdãos relativos ao julgamento de mérito dos Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227, da leitura do projeto se verifica que a intenção principal é de reafirmar, pela via legislativa, a necessidade de propositura da ação rescisória para desconstituição da coisa julgada, com vistas a conferir maior proteção ao próprio instituto, garantia individual prevista no art. 5º, inciso XXXV, da Carta Política de 1988
11- Importante ressaltar, nesse particular, que houve verdadeira inovação na compreensão da coisa julgada, porque a jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal sempre prestigiou o respeito à coisa julgada em detrimento à eventuais posições supervenientes do próprio STF sobre a constitucionalidade de leis. Nesse sentido:
E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA RECEBIDOS PARA NEGAR PROVIMENTO AO APELO EXTREMO – COISA JULGADA EM SENTIDO MATERIAL – INDISCUTIBILIDADE, IMUTABILIDADE E COERCIBILIDADE: ATRIBUTOS ESPECIAIS QUE QUALIFICAM OS EFEITOS RESULTANTES DO COMANDO SENTENCIAL – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL QUE AMPARA E PRESERVA A AUTORIDADE DA COISA JULGADA – EXIGÊNCIA DE CERTEZA E DE SEGURANÇA JURÍDICAS – VALORES FUNDAMENTAIS INERENTES AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – EFICÁCIA PRECLUSIVA DA “RES JUDICATA” – “TANTUM JUDICATUM QUANTUM DISPUTATUM VEL DISPUTARI DEBEBAT” – CONSEQUENTE IMPOSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO DE CONTROVÉRSIA JÁ APRECIADA EM DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO, AINDA QUE PROFERIDA EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – A QUESTÃO DO ALCANCE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 741 DO CPC – MAGISTÉRIO DA DOUTRINA – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
– A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade.
A superveniência de decisão do Supremo Tribunal Federal, declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada de eficácia “ex tunc” – como sucede, ordinariamente, com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ 164/506-509 – RTJ 201/765) –, não se revela apta, só por si, a desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, “in abstracto”, da Suprema Corte. Doutrina. Precedentes.
– O significado do instituto da coisa julgada material como expressão da própria supremacia do ordenamento constitucional e como elemento inerente à existência do Estado Democrático de Direito.
(RE 589513 ED-EDv-AgR, Relator: CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-158 DIVULG 12-08-2015 PUBLIC 13-08-2015)
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. DECLARAÇÃO DE CONSITUCIONALIDADE OU INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE EFEITOS AUTOMÁTICOS. NECESSIDADE DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO OU PROPOSITURA DE AÇÃO RESCISÓRIA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.
(RE 1183418 AgR, Relatora: CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 06 /08/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-179 DIVULG 15-08-2019 PUBLIC 16-08-2019)
EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Tributário. Ação rescisória. Exaurimento prazo decadencial. Coisa julgada em sentido material. Imutabilidade. Precedentes.
1. A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de ação rescisória, na fluência do prazo decadencial previsto em lei. Com o exaurimento de referido lapso temporal opera-se a coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o Supremo Tribunal Federal venha a consolidar seu entendimento em sentido contrário à decisão transitada em julgado.
2. Agravo regimental não provido
(ARE 864746 AgR, Relator: DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 27 /10/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-249 DIVULG 10-12-2015 PUBLIC 11- 12-2015)
12- Trata-se, portanto, de reversão legislativa da jurisprudência, o que é admitido pela Suprema Corte dentre da modelagem constitucional da Separação de Poderes (art. 2º, CF), fundamento do Estado democrático de direito no país, e da própria concepção de que posições jurisprudenciais não fossilizam as opções legislativas, em especial quanto às questões legais e constitucional mais flexíveis.
13- No entanto, é preciso consignar que a “legislação corretiva” colidente com jurisprudência do STF nasce com grave suspeita de inconstitucionalidade ou, em outras palavras, surge com presunção de legitimidade jurídica invertida.
14- Nesse sentido, o STF apontou firme posição na ADI 5.105. Sem descartar a possibilidade institucional de diálogos institucionais entre os Poderes da República, a Suprema Corte deu alguns contornos do que se pode considerar uma "reversão legislativa legítima de jurisprudência":
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. DIREITO DE ANTENA E DE ACESSO AOS RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO ÀS NOVAS AGREMIAÇÕES PARTIDÁRIAS CRIADAS APÓS A REALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES. REVERSÃO LEGISLATIVA À EXEGESE ESPECÍFICA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NAS ADIs 4490 E 4795, REL. MIN. DIAS TOFFOLI. INTERPRETAÇÃO CONFORME DO ART. 47, § 2º, II, DA LEI DAS ELEIÇÕES, A FIM DE SALVAGUARDAR AOS PARTIDOS NOVOS, CRIADOS APÓS A REALIZAÇÃO DO PLEITO PARA A CÂMARA DOS DEPUTADOS, O DIREITO DE ACESSO PROPORCIONAL AOS DOIS TERÇOS DO TEMPO DESTINADO À PROPAGANDA ELEITORAL GRATUITA NO RÁDIO E NA TELEVISÃO. LEI Nº 12.875/2013. TEORIA DOS DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS. ARRANJO CONSTITUCIONAL PÁTRIO CONFERIU AO STF A ÚLTIMA PALAVRA PROVISÓRIA (VIÉS FORMAL) ACERCA DAS CONTROVÉRSIAS CONSTITUCIONAIS. AUSÊNCIA DE SUPREMACIA JUDICIAL EM SENTIDO MATERIAL. JUSTIFICATIVAS DESCRITIVAS E NORMATIVAS. PRECEDENTES DA CORTE CHANCELANDO REVERSÕES JURISPRUDENCIAIS (ANÁLISE DESCRITIVA). AUSÊNCIA DE INSTITUIÇÃO QUE DETENHA O MONOPÓLIO DO SENTIDO E DO ALCANCE DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS. RECONHECIMENTO PRIMA FACIE DE SUPERAÇÃO LEGISLATIVA DA JURISPRUDÊNCIA PELO CONSTITUINTE REFORMADOR OU PELO LEGISLADOR ORDINÁRIO. POSSIBILIDADE DE AS INSTÂNCIAS POLÍTICAS AUTOCORRIGIREM-SE. NECESSIDADE DE A CORTE ENFRENTAR A DISCUSSÃO JURÍDICA SUB JUDICE À LUZ DE NOVOS FUNDAMENTOS. PLURALISMO DOS INTÉRPRETES DA LEI FUNDAMENTAL. DIREITO CONSTITUCIONAL FORA DAS CORTES. ESTÍMULO À ADOÇÃO DE POSTURAS RESPONSÁVEIS PELOS LEGISLADORES. STANDARDS DE ATUAÇÃO DA CORTE. EMENDAS CONSTITUCIONAIS DESAFIADORAS DA JURISPRUDÊNCIA RECLAMAM MAIOR DEFERÊNCIA POR PARTE DO TRIBUNAL, PODENDO SER INVALIDADAS SOMENTE NAS HIPÓTESES DE ULTRAJE AOS LIMITES INSCULPIDOS NO ART. 60, CRFB/88. LEIS ORDINÁRIAS QUE COLIDAM FRONTALMENTE COM A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE (LEIS IN YOUR FACE) NASCEM PRESUNÇÃO IURIS TANTUM DE INCONSTITUCIONALIDADE, NOTADAMENTE QUANDO A DECISÃO ANCORAR-SE EM CLÁUSULAS SUPERCONSTITUCIONAIS (CLÁUSULAS PÉTREAS). ESCRUTÍNIO MAIS RIGOROSO DE CONSTITUCIONALIDADE. ÔNUS IMPOSTO AO LEGISLADOR PARA DEMONSTRAR A NECESSIDADE DE CORREÇÃO DO PRECEDENTE OU QUE OS PRESSUPOSTOS FÁTICOS E AXIOLÓGICOS QUE LASTREARAM O POSICIONAMENTO NÃO MAIS SUBSISTEM (HIPÓTESE DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL PELA VIA LEGISLATIVA).
1. O hodierno marco teórico dos diálogos constitucionais repudia a adoção de concepções juriscêntricas no campo da hermenêutica constitucional, na medida em que preconiza, descritiva e normativamente, a inexistência de instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das disposições magnas, além de atrair a gramática constitucional para outros fóruns de discussão, que não as Cortes.
2. O princípio fundamental da separação de poderes, enquanto cânone constitucional interpretativo, reclama a pluralização dos intérpretes da Constituição, mediante a atuação coordenada entre os poderes estatais – Legislativo, Executivo e Judiciário – e os diversos segmentos da sociedade civil organizada, em um processo contínuo, ininterrupto e republicano, em que cada um destes players contribua, com suas capacidades específicas, no embate dialógico, no afã de avançar os rumos da empreitada constitucional e no aperfeiçoamento das instituições democráticas, sem se arvorarem como intérpretes únicos e exclusivos da Carta da República.
3. O desenho institucional erigido pelo constituinte de 1988, mercê de outorgar à Suprema Corte a tarefa da guarda precípua da Lei Fundamental, não erigiu um sistema de supremacia judicial em sentido material (ou definitiva), de maneira que seus pronunciamentos judiciais devem ser compreendidos como última palavra provisória, vinculando formalmente as partes do processo e finalizando uma rodada deliberativa acerca da temática, sem, em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional.
4. Os efeitos vinculantes, ínsitos às decisões proferidas em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, não atingem o Poder Legislativo, ex vi do art. 102, § 2º, e art. 103-A, ambos da Carta da República.
5. Consectariamente, a reversão legislativa da jurisprudência da Corte se revela legítima em linha de princípio, seja pela atuação do constituinte reformador (i.e., promulgação de emendas constitucionais), seja por inovação do legislador infraconstitucional (i.e., edição de leis ordinárias e complementares), circunstância que demanda providências distintas por parte deste Supremo Tribunal Federal.
5.1. A emenda constitucional corretiva da jurisprudência modifica formalmente o texto magno, bem como o fundamento de validade último da legislação ordinária, razão pela qual a sua invalidação deve ocorrer nas hipóteses de descumprimento do art. 60 da CRFB/88 (i.e., limites formais, circunstanciais, temporais e materiais), encampando, neste particular, exegese estrita das cláusulas superconstitucionais.
5.2. A legislação infraconstitucional que colida frontalmente com a jurisprudência (leis in your face) nasce com presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador ordinário o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente faz-se necessária, ou, ainda, comprovar, lançando mão de novos argumentos, que as premissas fáticas e axiológicas sobre as quais se fundou o posicionamento jurisprudencial não mais subsistem, em exemplo acadêmico de mutação constitucional pela via legislativa. Nesse caso, a novel legislação se submete a um escrutínio de constitucionalidade mais rigoroso, nomeadamente quando o precedente superado amparar-se em cláusulas pétreas.
6. O dever de fundamentação das decisões judicial, inserto no art. 93 IX, da Constituição, impõe que o Supremo Tribunal Federal enfrente novamente a questão de fundo anteriormente equacionada sempre que o legislador lançar mão de novos fundamentos.
7. O Congresso Nacional, no caso sub examine, ao editar a Lei nº 12.875/2013, não apresentou, em suas justificações, qualquer argumentação idônea a superar os fundamentos assentados pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs nº 4430 e nº 4795, rel. Min. Dias Toffoli, em que restou consignado que o art. 17 da Constituição de 1988 – que consagra o direito político fundamental da liberdade de criação de partidos – tutela, de igual modo, as agremiações que tenham representação no Congresso Nacional, sendo irrelevante perquirir se esta representatividade resulta, ou não, da criação de nova legenda no curso da legislatura.
8. A criação de novos partidos, como hipótese caracterizadora de justa causa para as migrações partidárias, somada ao direito constitucional de livre criação de novas legendas, impõe a conclusão inescapável de que é defeso privar as prerrogativas inerentes à representatividade política do parlamentar trânsfuga.
9. No caso sub examine, a justificação do projeto de lei limitou-se a afirmar, em termos genéricos, que a regulamentação da matéria, excluindo dos partidos criados o direito de antena e o fundo partidário, fortaleceria as agremiações partidárias, sem enfrentar os densos fundamentos aduzidos pelo voto do relator e corroborado pelo Plenário.
10. A postura particularista do Supremo Tribunal Federal, no exercício da judicial review, é medida que se impõe nas hipóteses de salvaguarda das condições de funcionamento das instituições democráticas, de sorte (i) a corrigir as patologias que desvirtuem o sistema representativo, máxime quando obstruam as vias de expressão e os canais de participação política, e (ii) a proteger os interesses e direitos dos grupos políticos minoritários, cujas demandas dificilmente encontram eco nas deliberações majoritárias.
11. In casu, é inobjetável que, com as restrições previstas na Lei nº 12.875/2013, há uma tentativa obtusa de inviabilizar o funcionamento e o desenvolvimento das novas agremiações, sob o rótulo falacioso de fortalecer os partidos políticos. Uma coisa é criar mecanismos mais rigorosos de criação, fusão e incorporação dos partidos, o que, a meu juízo, encontra assento constitucional. Algo bastante distinto é, uma vez criadas as legendas, formular mecanismos normativos que dificultem seu funcionamento, o que não encontra guarida na Lei Maior. Justamente por isso, torna-se legítima a atuação do Supremo Tribunal Federal, no intuito de impedir a obstrução dos canais de participação política e, por via de consequência, fiscalizar os pressupostos ao adequado funcionamento da democracia.
12. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 1º e 2º, da Lei nº 12.875/2013.
(ADI 5105, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 01/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 15-03-2016 PUBLIC 16-03-2016)
15- Por essa razão, a despeito de não se verificar aparentes obstes jurídicos na proposta parlamentar e de a posição institucional da CNI apontar a enorme preocupação do setor industrial em relação ao assunto, faz-se apenas um alerta para as dificuldades e críticas que a proposta pode enfrentar durante o curso do processo legislativo, bem como para um potencial questionamento quanto à constitucionalidade de alteração no sentido pretendido.
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Pedro Henrique Braz Siqueira é advogado da CNI