Provisão para assegurar o cumprimento de obrigações trabalhistas
Por Eduardo Albuquerque Sant’Anna
EDIÇÃO 21 - FEVEREIRO 2023
PL 2.646/2020 - Permite a criação de debêntures de infraestrutura - Expansão segundo o princípio do desenvolvimento sustentável - Investimentos para combater a crise COVID-19 - Demanda permanente do setor produtivo por investimento em infraestrutura - Apoio da CNI.
I- Contextualização
1-Trata-se de análise jurídica do Projeto de Lei 135/2023 (PL), que dispõe sobre a obrigatoriedade de as empresas de trabalho temporário e de prestação de serviços a terceiro provisionarem valores para o pagamento das obrigações trabalhistas de seus empregados.
1.1-Aponta o autor do PL que, em muitos casos que envolvem terceirização, “as empresas prestadoras de serviços deliberadamente deixam de cumprir suas obrigações trabalhistas, sonegando, mormente no ato da dispensa, o pagamento de direitos constitucionalmente assegurados ao trabalhador” e, nas situações mais graves, os trabalhadores são contratados sem registros (informais).
1.2-Sustenta que o objetivo é reduzir a informalidade e possibilitar o provisionamento, em conta específica, de valores para pagamento das verbas trabalhista. Assevera que a movimentação do saldo desta conta é restrita ao pagamento das obrigações trabalhistas.
II- Análise
Aspectos formais
2-Sob o ponto de vista do processo legislativo constitucional, não há óbice à atuação parlamentar inicial no caso, pois a matéria não se sujeita à iniciativa privativa do Presidente da República (artigo 61 e § 1º da Constituição Federal). Não há, portanto, vício formal subjetivo.
2.1-No aspecto federativo, a proposição tem curso no Congresso Nacional, ambiente parlamentar adequado. Também está submetida ao processo legislativo pertinente à mudança/alteração pretendida, pois compete à União, por Lei Ordinária, legislar nessa matéria (art. 22, I, da Constituição Federal).
Aspectos materiais
3-O autor parte de premissa errada para fundamentar sua proposta. Aduz ser usual que empresas prestadoras de serviços “deliberadamente deixam de cumprir suas obrigações trabalhistas”.
3.1-A situação não é essa, mormente quando o contrato de prestação de serviços é firmado com o poder público. Ao contrário: é comum as empresas receberem com grande atraso os valores previamente contratados, atrapalhando a sua gestão e criando insegurança financeira, gerando consequências que avançam sobre outros contratos da empresa.
3.2-Em razão do alegado descumprimento deliberado dos contratos, apresenta projeto de lei impondo a formação compulsória de numerário, em conta específica, para assegurar o adimplemento das obrigações trabalhistas. Em síntese, dispõe sobre a finalidade dos valores depositados; as hipóteses de movimentação; as infrações incidentes pelo descumprimento da lei e respectiva multa; regras para contratação do poder público e remuneração da conta.
3.3-Em relação ao setor público, já existe regra conhecida impondo penalidades para evitar que as empresas contratadas pela administração pública deixem de cumprir suas obrigações, conforme se pode verificar na Lei 14.133/21, que trata das licitações e contratos administrativos.
3.4-A exemplo podemos citar o artigo 50, que estabelece a obrigatoriedade de o contratado apresentar, quando solicitado pela Administração e sob pena de multa, comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas e com o FGTS em relação aos empregados diretamente envolvidos na execução do contrato, em especial quanto ao: a) recibo de pagamento de salários, adicionais, horas extras, repouso semanal remunerado e décimo terceiro salário; b) recibo de concessão e pagamento de férias e do respectivo adicional; c) recibo de quitação de obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados dispensados até a data da extinção do contrato e d) recibo de pagamento de vale-transporte e vale-alimentação, na forma prevista em norma coletiva, por exemplo.
3.5-O art. 89, § 2º, disciplina, ainda, que os contratos deverão estabelecer com clareza e precisão as condições para sua execução, expressas em cláusulas que definam os direitos, as obrigações e as responsabilidades das partes. O art. 92, por sua vez, impõe que em todos os contratos devam constar cláusulas que estabeleçam os direitos e as responsabilidades das partes, as penalidades cabíveis e os valores das multas e suas bases de cálculo (inciso XIV) e a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições exigidas para a habilitação na licitação, ou para a qualificação, na contratação direta (inciso XVI).
3.6-Como se não fosse suficiente, na lei há capítulo específico tratando das garantias (arts. 96 e seguintes), onde se permite que, a critério da autoridade competente, possa se exigir, prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e fornecimentos (caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública; seguro-garantia ou fiança bancária). O seguro garantia, especificamente, conforme definido na lei, tem “o objetivo garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado perante a Administração, inclusive as multas, os prejuízos e as indenizações decorrentes de inadimplemento, observadas as seguintes regras nas contratações regidas por esta Lei”
3.7-Como visto, se a administração executar o contrato como deve, o risco de inexecução trabalhista por parte do contratado se torna pouquíssimo provável.
3.8-Acrescente-se, ainda, que no caso se incide o disposto no inciso IV do art. 7º da Lei Complementar 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis. Conforme assenta a norma, “o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa”.
3.9-Em relação às empresas prestadoras de serviço, do ponto de vista estritamente jurídico a imposição destas regras parece violar os arts. 1º, IV e 170, caput da Constituição Federal, por desrespeitar o princípio da livre iniciativa ao se imiscuir indevidamente na gestão empresarial. Ao agir desta forma, a medida se apresenta contrária à ordem contida nos artigos anteriormente citados. Neste sentido seguiu o Ministro Marco Aurélio (RE 635546), ao asseverar que os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência “asseguram aos agentes econômicos a liberdade de decidir como estruturarão seu negócio”. Igualmente o Ministro Luís Roberto Barroso que, ao relatar a ADPF 324, apontou que os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram aos agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade.
3.10-Acrescente-se que são mais do que conhecidas as danosas consequências a médio e longo prazos da imposição de amarras aos empregadores no que se refere à condução livre da empresa, na contramão das regras que regulam quaisquer mercados, sendo o principal deles o aumento dos custos para o setor produtivo que, por consequência, acabarão por elevar os preços para o consumidor final.
3.11-Neste sentido:
O art. 170 da CF, ao proclamar a livre-iniciativa como fundamento da Ordem Econômica, reconhece a liberdade como um dos fatores estruturais da Ordem. Afirma, assim, a autonomia empreendedora do homo economicus na conformação da atividade econômica. Na livre-iniciativa a liberdade expressa-se, de um lado, em termos negativos como ausência de impedimentos e expansão da própria atividade. Em termos de liberdade positiva, como participação na construção da riqueza econômica. [...]Em termos da ordem econômica, assegurar é, assim, velar para que sejam normativamente evitados impedimentos (discriminação) e promovidos reequilíbrios econômicos em situações de desfavorecimento de fato. [...] Para bem compreendê-la é preciso levar em consideração os efeitos que a forte presença do Estado regulador na atividade econômica sobre ela exerce, quer por imposição de obrigações, de proibições, de autorizações, de estímulos e quer até por omissão normativa. Produzem-se, de fato, limitações na liberdade. Essas limitações, contudo, são mediatas, não estão contidas imediatamente na regulação normativa. Elas influenciam a motivação dos sujeitos. Assim, se o Estado impõe ou deixa de impor regras, isso condiciona os sujeitos. Isso motiva os sujeitos, mas o efeito motivador é apenas um dos efeitos possíveis. A liberdade de iniciativa, assim, está na possibilidade deixada ao sujeito de exercer o seu próprio cálculo de custo/benefício. E o direito de liberdade de iniciativa garante-se, assim, por meio de um princípio de sopesamento, capaz de equilibrar as interferências nas motivações (estatais, sociais, individuais, etc.). [...] A Constituição, nessa linha, consagra o mercado e a dinâmica dos agentes privados como força motriz por excelência da economia, na crença consistente de que as soluções geradas pelos agentes privados sobre o que, como e quanto produzir são as mais aptas à produção de bem-estar. Note-se que a atuação do Estado passa a ter um caráter negativo, isto é, de identificação e colocação dos limites aos agentes privados. [...] O Estado, nesse sentido, não exerce orientações impositivas sobre a atividade econômica, fazendo-o apena de modo indicativo (art. 174, caput). Quando ações ou operações privadas ofenderem ou ameaçarem interesses públicos relevantes como a saúde, a livre competição, a segurança, o meio ambiente, o pleno emprego, limita-se a apontar quais não serão aceitas. As orientações positivas sobre a organização da atividade privada, dentre da lei, devem partir sempre dos próprios agentes, por foça da livre-iniciativa que fundamenta e informa todo o sistema econômico. (in 30 anos da Constituição Brasileira: Democracia, Direitos Fundamentais e Instituições. Organizador José Antônio Dias Toffoli. Ed. Forense, 2018. páginas 761-763)
3.12-Ademais, o PL possui algumas impropriedades técnicas. Podemos citar, exemplificativamente:
a) as multas são aplicadas em UFIR, unidade referencial que não existe mais;
b) contrariamente ao disposto na Lei 6.019/74, que dispõe ser subsidiária a responsabilidade da contratante pelas obrigações trabalhistas e recolhimentos previdenciários, o projeto de lei impõe a responsabilidade solidária, causando antinomia;
c) assevera, também (art. 14, parágrafo único) que o contrato somente será considerado encerrado mediante a comprovação do pagamento de todas as obrigações rescisórias, sociais e previdenciárias dos empregados. A proposta não é razoável (mormente quando o contratante for serviço público), uma vez que ao dispor sobre a impossibilidade de encerramento do contrato de trabalho acaba por protrair também as obrigações contratuais (essencialmente a prestação e contraprestação pelo serviço), decorrendo inúmeras obrigações e responsabilidades para ambas as partes.
III - Conclusão
4-Diante do exposto, o PL 135/2023 não merece apoio.
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Eduardo Albuquerque Sant’Anna é advogado da CNI