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Prevenção de litígio e processo administrativo tributário

Por Pedro Henrique Braz Siqueira

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EDIÇÃO 20 - Dezembro 2022
imagem de dominós caindo sobre uma peça de xadrez representando prevenção de litígio e processo administrativo tributário

 

I- Objeto

1. Trata-se de pedido de parecer jurídico sobre o Projeto de Lei Complementar (PLP) 124/22, cujo objetivo é instituir normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária.

2. Confira-se a síntese da proposta apresentada:

Propõe alterações no Código Tributário Nacional voltadas à prevenção de conflitos tributários, ao estímulo à adoção de soluções consensuais em litígios tributários e à harmonização das normas relativas ao processo administrativo tributário.

São incluídos à inclusão de dispositivos visam à implementação de métodos preventivos de autorregularização e programas de conformidade que possibilitem o diálogo e a plena compreensão objetiva e subjetiva de divergências.

Fixa limites específicos à imposição de penalidades por parte das administrações tributárias, como o dever de observância à razoabilidade e à proporcionalidade em relação à infração praticada pelo sujeito passivo. Também são fixados limites quantitativos para a fixação de multas tributárias.

Estabelece critérios de dosimetria para gradação das multas, a individualizando a conduta do agente diante do caso concreto, levando em consideração também os bons antecedentes fiscais do contribuinte. Prevê que as atenuantes não configuram renúncia de receita, razão pela qual se dispensa a necessidade de mensuração do respectivo impacto orçamentário e financeiro e eventual indicação da fonte de custeio.

Esclarece que a denúncia espontânea feita pelo sujeito passivo acarreta o afastamento das multas de mora e de ofício.

Prevê o efeito vinculante para as administrações tributárias das decisões proferidas pelo STF, em sede de repercussão geral, e pelo STJ, em sede de recursos repetitivos.

Estabelece normas gerais que asseguram o cumprimento do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, pelas três esferas - trazendo uniformidade de prazos e recursos mínimos. Entretanto, permite que cada ente tenha a disciplina própria no que tange ao processo administrativo tributário, desde que observe o núcleo essencial do devido processo legal.

3. Na justificativa oferecida assinala-se que o texto apresentado é um dos frutos dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos legislativos tendentes a dinamizar, unificar e modernizar o processo administrativo e tributário nacional.

4. Da exposição de motivos constante da propositura verificam-se as premissas maiores dessa, referentes a: “(i) alterações voltadas à prevenção de conflitos tributários, como o mandamento direcionado ao estabelecimento de programas de conformidade e à facilitação da autorregularização; (ii) alterações voltadas ao estímulo à adoção de soluções consensuais em litígios tributários, incluindo a desjudicialização dos processos tributários; e (iii) alterações com vistas à harmonização das normas relativas ao processo administrativo tributário, como forma de fortalecer o contencioso administrativo por meio da previsão de garantias mínimas a serem observadas por todas as esferas da Federação”.

5. É o que cumpre relatar.

 

II- Análise

II.I- ASPECTOS FORMAIS

 

6. Não há impedimentos jurídicos formais à proposta, estando o projeto de acordo com o disposto no art. 61 da Constituição Federal.

7. A proposição tem curso em ambiente parlamentar adequado, Congresso Nacional, e está submetida ao processo legislativo pertinente à mudança/alteração pretendida, pois compete à União, por lei complementar, legislar nessa matéria, nos termos dos arts. 22, inciso I, 24, inciso I e § 1º, e 146, inciso III, todos da Carta da República.

 

II.II- ASPECTOS MATERIAIS

 

8. Quanto ao mérito, percebe-se que a proposição ora em análise visa instituir normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária.

9. Não se vislumbram impedimentos jurídicos às alterações e aos acréscimos desejados com o projeto, sendo pertinentes as seguintes ponderações:

9.1. em relação à redação do pretendido art. 113-A do Código Tributário Nacional (CTN), a ideia de se averiguar a razoabilidade da penalidade e a proporcionalidade entre a sanção e ou ato infracional praticado revela-se juridicamente adequado e parece estar em alguma sintomia com o entendimento desta Diretoria Jurídica (Pareceres 1551/19, 970/14 e 407/10), mas é preciso frisar que a majoração pretendida no § 2º pode conflitar com o entendimento do STF sobre o tema, como se verifica dos seguintes precedentes:

EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. CDA. Nulidade. Alegada violação do art. 5º, LV, da CF/88. Matéria infraconstitucional. Afronta reflexa. Multa. Caráter confiscatório. Necessidade de reexame de fatos e provas. Taxa SELIC. Constitucionalidade. 1. A afronta aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa ou do contraditório, quando depende, para ser reconhecida como tal, da análise de normas infraconstitucionais, configura apenas ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal. 2. Ambas as Turmas da Corte têm-se pronunciado no sentido de que a incidência de multas punitivas (de ofício) que não extrapolem 100% do valor do débito não importa em afronta ao art. 150, IV, da Constituição. 3. Para acolher a pretensão da agravante e ultrapassar o entendimento do Tribunal de origem acerca da proporcionalidade ou da razoabilidade da multa aplicada, seria necessário o revolvimento dos fatos e das provas constantes dos autos. Incidência da Súmula nº 279/STF. 4. É firme o entendimento da Corte no sentido da legitimidade da utilização da taxa Selic como índice de atualização de débitos tributários, desde que exista lei legitimando o uso do mencionado índice, como no presente caso. 5. Agravo regimental não provido. (RE 871174 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 22/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-224 DIVULG 10-11-2015 PUBLIC 11-11-2015) - grifou-se

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. MULTA PUNITIVA DE 120% REDUZIDA AO PATAMAR DE 100% DO VALOR DO TRIBUTO. ADEQUAÇÃO AOS PARÂMETROS DA CORTE. A multa punitiva é aplicada em situações nas quais se verifica o descumprimento voluntário da obrigação tributária prevista na legislação pertinente. É a sanção prevista para coibir a burla à atuação da Administração tributária. Nessas circunstâncias, conferindo especial destaque ao caráter pedagógico da sanção, deve ser reconhecida a possibilidade de aplicação da multa em percentuais mais rigorosos, respeitados os princípios constitucionais relativos à matéria. A Corte tem firmado entendimento no sentido de que o valor da obrigação principal deve funcionar como limitador da norma sancionatória, de modo que a abusividade revela-se nas multas arbitradas acima do montante de 100%. Entendimento que não se aplica às multas moratórias, que devem ficar circunscritas ao valor de 20%. Precedentes. O acórdão recorrido, perfilhando adequadamente a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, reduziu a multa punitiva de 120% para 100%. Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 836828 AgR, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 16/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-027 DIVULG 09-02-2015 PUBLIC 10-02-2015) - grifou-se

E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ALEGADA VIOLAÇÃO AO PRECEITO INSCRITO NO ART. 150, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – CARÁTER SUPOSTAMENTE CONFISCATÓRIO DA MULTA TRIBUTÁRIA COMINADA EM LEI – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL DE CONFISCATORIEDADE DO TRIBUTO – CLÁUSULA VEDATÓRIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO MATERIAL AO EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E QUE TAMBÉM SE ESTENDE ÀS MULTAS DE NATUREZA FISCAL – PRECEDENTES – INDETERMINAÇÃO CONCEITUAL DA NOÇÃO DE EFEITO CONFISCATÓRIO – DOUTRINA – PERCENTUAL DE 25% SOBRE O VALOR DA OPERAÇÃO – “QUANTUM” DA MULTA TRIBUTÁRIA QUE ULTRAPASSA, NO CASO, O VALOR DO DÉBITO PRINCIPAL – EFEITO CONFISCATÓRIO CONFIGURADO – OFENSA ÀS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS QUE IMPÕEM AO PODER PÚBLICO O DEVER DE PROTEÇÃO À PROPRIEDADE PRIVADA, DE RESPEITO À LIBERDADE ECONÔMICA E PROFISSIONAL E DE OBSERVÂNCIA DO CRITÉRIO DA RAZOABILIDADE – AGRAVO IMPROVIDO. (RE 754554 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-234 DIVULG 27-11-2013 PUBLIC 28-11-2013) - grifou-se

9.2. a modificação relativa ao art. 138 do CTN não contém vícios materiais de constitucionalidade, sendo salutar a categórica exoneração da multa de mora no caso de denúncia espontânea. Seria interessante apenas acrescer a exclusão da multa de ofício, nos moldes do texto originário do art. 38 do PLP 125/22.

9.3. os arts. 139-A e 139-B estão em linha com modelos estrangeiros que pautam a relação entre aquele e o fisco nos deveres de cooperação, transparência e conformidade, não se vislumbrando quaisquer óbices jurídicos. Essa forma de encerrar a relação jurídico-tributária de forma mais dinâmica e transparente, estimulando o comportamento adimplente do sujeito passivo inclusive já é adotada pela RFB, como se percebe das Portarias RFB nº 4.888/2020[1], por meio da qual se disciplina o monitoramento dos maiores contribuintes, e nº 28/2021[2], que trata do Programa Confia[3], cujo objetivo final é promover a conformidade (compliance) na esfera tributária.

9.4. os parágrafos que se pretende incluir no art. 142 do CTN configuram-se como verdadeiras garantias dos contribuintes, na medida em que positivam a impossibilidade de cominação de multas de ofício ou de mora em caso de lançamento destinado a prevenir a decadência de crédito tributário cuja exigibilidade houver sido suspensa na forma dos incisos II, IV e V do art. 151 do CTN.

9.5. os novos incisos pretendidos para o art. 151 do CTN asseguram a suspensão da exigibilidade do crédito tributário em relação a métodos preventivos e compositivos de litígios, enquanto o novo inciso do art. 156 passaria a prever a sentença arbitral como forma de extinção do crédito tributário. Não se vislumbram obstes jurídicos a adoção desses institutos, na linha de expedientes anteriores, merecendo ser destacado que a adoção da possibilidade de utilização dessas formas de resolução de conflitos em matéria tributária (transação e arbitragem tributária) e a indicação de suspensão da exigibilidade do crédito poderão diminuir o nível de litigância fiscal atual e incentivar a conformidade (compliance) em âmbito tributário.

9.6. a regra do § 3º do art. 161 do CTN, que prevê a interrupção da incidência de multa de mora em caso de tutela ou liminar tem inspiração no art. 63, § 2º, da Lei nº 9.430/96.

9.7. a inclusão dos parágrafos relacionados ao art. 171 do CTN cria algumas regras básicas para todos os Entes da Federação em matéria de transação, o que não possui impedimentos legais.

9.8. os arts. 171-A e 171-B estabelecem a possibilidade de utilização da arbitragem e mediação em âmbito tributário, o que, como já exposto, é juridicamente possível e teria o condão de contribuir para redução da litigiosidade fiscal.

9.9. a mudança no art. 174, parágrafo único, do CTN, e a estipulação com a inserção de um inciso V de que a instauração do procedimento de mediação, que se dá com a assinatura do respectivo termo de aceitação, é causa de interrupção da prescrição cria regra semelhante à existente no art. 19, § 2º, da Lei nº 9.307/96, não havendo obstes legais. Por sua vez, a inclusão da previsão do inciso VI ao parágrafo único do referido dispositivo do CTN parece juridicamente adequada, tendo em vista a previsão do art. 8º da Lei de Arbitragem e o fato de que a assinatura do compromisso arbitral torna litigiosa o crédito tributário em discussão.

9.10. as previsões almejadas com o art. 194-A do CTN não possuem vícios materiais de constitucionalidade, merecendo ser frisado que a moderação sancionatória contempla a ideia de responsividade tributária e nos parece adequada e alinhada às práticas adotadas pelas Administrações Tributárias dos países membros da OCDE.

9.11. o art. 194-B, ao dispor sobre regras que impõe a necessária observância dos precedentes reforçar a pretensão de se diminuir o nível de litigância em matéria tributária.

9.12. uma norma geral tratando de consulta tributária e que confere um poder maior de vinculação a esse instrumento jurídico, como almejado com o art. 194-C, não possui impedimentos jurídicos e tem o condão de gerar maior isonomia tributária entre os contribuintes.

9.13. no que tange às normas gerais aplicadas ao processo administrativo tributário (arts. 208-A a 208-H do CTN), constata-se a intenção, sem quaisquer obstes legais, de se estabelecer regras processuais basilares para todos os Entes Federados, de forma a assegurar: a) aos litigantes o devido processo legal, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos mínimos a ela inerentes; b) os elementos mínimos que qualquer auto de infração lavrado deverá possuir; c) um período de recesso entre os meses de dezembro e janeiro, nos moldes previstos no Código de Processo Civil; d) a impossibilidade de revisão de decisão definitiva favorável ao contribuinte; e) a fundamentação e a publicidade de todas as decisões administrativas em matéria tributária; f) cogente observância às súmulas vinculantes e às decisões proferidas em controle concentrado e em precedentes qualificados; e g) o controle de legalidade dos atos administrativos, impondo-se o reconhecimento de nulidade em certos casos e seus desdobramentos.

III - Conclusão

 

10. Conclui-se, desta forma, que o PLP 124/22 pode receber o apoio, sem prejuízo de aperfeiçoamentos e discussões sobre os pontos específicos que foram registrados no corpo do presente expediente.

 

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Pedro Henrique Braz Siqueira é advogado da CNI

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