A necessária valorização da autonomia coletiva pelo Poder Judiciário
Por Fernanda de Menezes Barbosa
EDIÇÃO 20 - Dezembro 2022
A negociação coletiva é um dos institutos mais relevantes para a evolução das relações de trabalho. Possui fundamental e histórico papel de conformar ordenamento autônomo, criativo e dinâmico, que acompanha as reivindicações e as necessidades de cada categoria.
Existem regras constitucionais vigentes claras com relação à autonomia coletiva. O artigo 8º da Carta confere aos sindicatos a liberdade de organização, de atuação e garante a ausência de interferência estatal. O artigo 7º deixa expresso que o reconhecimento das negociações coletivas é legítimo direito do trabalhador e elenca expressamente a negociação coletiva como exceção à garantia da irredutibilidade salarial.
Não obstante essas garantias, instrumentos livremente pactuados são, não raro, objeto de anulação pelo Judiciário trabalhista, numa perspectiva intervencionista e restritiva da amplitude do que pode ser objeto da avença coletiva. Isso se deve em grande medida à consolidação de visões e valores específicos[1] e à fluidez que o ordenamento jurídico propicia.
Esse caráter interventivo merece reavaliação notadamente após as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 590.415/SC e, mais recentemente, no ARE 1.121.633/GO e na ADPF 323. Aquela Corte reconheceu a validade de normas coletivas em face do ordenamento jurídico ordinário, enfatizando seu caráter dinâmico e determinado. Essas decisões têm papel relevantíssimo ao afirmar os parâmetros para a excepcional e pontual anulação e intervenção nos instrumentos negociados (o conceito de indisponibilidade de direitos).
A Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), que teve sua vigência iniciada em novembro de 2017, também avançou nesse sentido, inserindo artigos (611-A; 611-B e 614, §3º) à Consolidação das Leis do Trabalho que seguem a mesma linha das premissas constitucionais reconhecidas: a liberdade do negociar coletivo, os limites nas previsões constitucionais (e não no ordenamento ordinário) e sua duração determinada.
Numa perspectiva democrática, é preciso retomar, na atividade judicial de interpretar as leis, os parâmetros legítimos contidos na Constituição. Em que pese o sedutor argumento de que os integrantes do Poder Judiciário saberiam de forma mais técnica e adequada o que se deveria aplicar ou não à determinada realidade social, escolha política diversa já foi tomada com a Constituição de 1988.
A decisão judicial ativista torna-se ainda mais negativa se considerarmos, na perspectiva deste artigo, os direitos coletivos do trabalho. Nas palavras de Amauri Mascaro Nascimento, o interesse coletivo não é público, é privado e ao sindicato cabe a sua defesa[2]. Não é razoável manter-se (diante de todo o sistema constitucional já posto) uma perspectiva judicial de intervenção e tutela de interesses que devem ser definidos e defendidos por seus titulares (diretamente ou por meio de seus representantes).
A ideia de que disposições reputadas não benéficas (isoladamente) devem sempre ser anuladas pelo Poder Judiciário não contribui para a evolução e o amadurecimento do debate social e da participação da categoria no desenvolvimento de suas próprias pautas[3]. A certeza da tutela judicial favorável induz à inação dos sindicatos profissionais supostamente beneficiados e à desconfiança dos sindicatos da categoria econômica (e os próprios empregadores), colaborando para o enfraquecimento do sistema sindical e de sua representatividade[4].
Nesse contexto, é imperioso que se supere a noção de que a Justiça do Trabalho desempenha adequadamente seu papel quando reiteradamente valora e anula disposições coletivas. É preciso que o exercício do intérprete julgador não se atenha à mera alegação de violação a princípios inespecíficos, ou de suposto prejuízo a uma das partes, mas dedique-se ao estabelecimento do que é de fato indisponível (baseando-se no rol de direitos constitucionais) e ao reconhecimento da autonomia coletiva.
Por outro lado, cabe aos atores sociais competentes, num exercício de diálogo e composição, consolidar os avanços trazidos pela jurisprudência constitucional. Mesmo diante dos atuais entraves à composição coletiva, relacionados à receita das entidades sindicais e ao estabelecimento de contribuições ou taxas nos instrumentos coletivos (tema que mereceria estudo próprio), é preciso que se abram os espaços de diálogo, num esforço inclusive de fomentar o engajamento, o associativismo e a construção de pautas mais complexas, aderentes às demandas do futuro do trabalho.
1 Sobre o ponto, cite-se trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, relator da ADPF 323: “(...) decanta-se casuisticamente um dispositivo constitucional até o ponto que dele consiga ser extraído entendimento que se pretende utilizar em favor de determinada categoria” (ADPF 323, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 30/05/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-184 DIVULG 14-09-2022 PUBLIC 15-09-2022)
2 (...) [o sindicalismo] é um componente indispensável do Estado de Direito e uma instituição que se encontra diante de um desafio provocado pelas enormes transformações pelas quais passam as relações de trabalho. Uma democracia é adulta quando tem condições de preservar a liberdade sindical, princípio maior da teoria da organização sindical, fruto de longa evolução das ideias e das estruturas sociais e políticas, cujas origens remotas são encontradas nas corporações de ofício medievais. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. op. cit., p. 58.
3 Cito trecho do voto do relator, Ministro Luiz Roberto Barroso no RE 590415/SC: “A negociação coletiva é uma forma de superação de conflito que desempenha função política e social de grande relevância. De fato, ao incentivar o diálogo, ela tem uma atuação terapêutica sobre o conflito entre capital e trabalho e possibilita que as próprias categorias econômicas e profissionais disponham sobre as regras às quais se submeterão, garantindo aos empregados um sentimento de valor e de participação. É importante como experiência de autogoverno, como processo de autocompreensão e como exercício da habilidade e do poder de influenciar a vida no trabalho e fora do trabalho. É, portanto, um mecanismo de consolidação da democracia e de consecução autônoma da paz social”.
4 No ponto, sobre o dinamismo e o necessário equilíbrio da negociação coletiva, cite-se trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, relator da ADPF 323, disponibilizado quando do julgamento no Plenário Virtual: “da jurisprudência trabalhista, constata-se que empregadores precisam seguir honrando benefícios acordados, sem muitas vezes, contudo, obter o devido contrabalanceamento. Ora, se acordos e convenções coletivas são firmados após amplas negociações e mútuas concessões, parece evidente que as vantagens que a Justiça Trabalhista pretende ver incorporadas ao contrato individual de trabalho certamente têm como base prestações sinalagmáticas acordadas com o empregador. Essa é, afinal, a essência da negociação trabalhista. Soa estranho, desse modo, que apenas um lado da relação continue a ser responsável pelos compromissos antes assumidos – ressalte-se, em processo negocial de concessões mútuas”. (ADPF 323, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 30/05/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-184 DIVULG 14-09-2022 PUBLIC 15-09-2022)
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Fernanda de Menezes Barbosa é advogado da CNI.
O texto é um resumo do artigo produzido pela advogada da CNI Fernanda de Menezes Barbosa, vencedor do Prêmio Helio Rocha de Trabalho Jurídico 2022, realizado pelas entidades nacionais do Sistema Indústria.