1. Análise da MP 1051, de 18 de maio de 2021, que institui o Documento Eletrônico de Transporte (DT-e) para desburocratizar o setor de transporte rodoviário.
2. Pelo apoio da CNI, com a sugestão adequar o valor da multa administrativa aos princípios da proporcionalidade, não confisco e à garantia da propriedade, utilizando-se por analogia os valores da multa administrativa estipulada na lei do Vale-Pedágio.
por Christina Aires
EDIÇÃO 15 - SETEMBRO 2021
PL 2.646/2020 - Permite a criação de debêntures de infraestrutura - Expansão segundo o princípio do desenvolvimento sustentável - Investimentos para combater a crise COVID-19 - Demanda permanente do setor produtivo por investimento em infraestrutura - Apoio da CNI.
I- SÍNTESE
1- A COAL requer a análise da MP 1051, de 18 de maio de 2021, que institui o Documento Eletrônico de Transporte (DT-e) para desburocratizar o setor de transporte rodoviário. O documento será exclusivamente digital e sua geração e emissão prévias serão obrigatórias à execução da operação de transporte de carga. Eis o resumo encontrado no Legisdata:
- O DT-e será gerado por pessoa jurídica de direito privado denominada entidade geradora de DT-e, que será registrada pelo Ministério da Infraestrutura.
- O serviço de emissão do DT-e poderá ser explorado diretamente pelo Ministério da Infraestrutura ou por meio de concessão ou de permissão.
- Regulamento disporá sobre as hipóteses de dispensa do DT-e, considerando critérios como distância entre origem e destino do transporte, seu peso, volume total e o tipo da carga.
- Órgãos e entidades da administração pública intervenientes em operações de transporte unificarão no DT-e documentos e demais obrigações administrativas de sua competência relacionadas às operações de transporte rodoviário.
- Constitui obrigação do embarcador ou proprietário contratante de serviços de transporte a geração, solicitação, cancelamento e encerramento do DT-e emitido.
- São infrações puníveis com advertência e multa, entre outras, operações de transporte sem prévia emissão do DT-e ou a não disponibilização deste documento ao Transportador Autônomo de Cargas (TAC).
- Altera a Lei de transporte rodoviário de cargas para prever a utilização do DT-e e alterar possiblidades de pagamentos de frete no transporte rodoviário de cargas ao TAC.
- O Documento Eletrônico de Transporte (DT-e) será implementado no território nacional, na forma e no cronograma estabelecidos por ato do Poder Executivo federal.
II- Análise
2-Não há inconstitucionalidade formal e a CNI deve apoiar a medida.
3-Deve ser destacado que a implementação do DT-e demanda uma série de regulamentações, em especial para realizar o objetivo previsto no art. 3º, inciso I de:
Art. 3º São objetivos do DT-e:
“I - unificar, reduzir e simplificar dados e informações sobre cadastros, registros, licenças, certidões, autorizações e seus termos, permissões e demais documentos similares de certificação, anuência ou liberação decorrentes de obrigações administrativas exigidas por órgãos e entidades intervenientes nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, para a realização e a contratação da operação de transporte;
4-Com efeito, a implantação do DT-e se fará de forma paulatina, por fases, devendo ser acompanhadas essas regulamentações para que o DT-e não venha a se transformar em apenas mais um documento na burocracia do transporte, perdendo seu objetivo unificador.
5-A MPV é importante porque além de instituir o DT-e exclusivamente digital, com os objetivos ali constantes, esta também confere as competências aos órgãos da Administração Pública responsáveis por implementar o Documento eletrônico, o que atende à iniciativa exclusiva para a matéria, inscrita no art. 61 § 1º, II, b e 84, VI da CF, de forma a legitimar o processo legislativo, vício este apontado ao Projeto de Lei – 6093/19, no Parecer DJ 2049/19 (Protocolo 60.160/19-1), para justificar o não apoio da CNI naquele caso.
6-Do ponto de vista jurídico, chama a atenção a desproporcionalidade das sanções e multas aplicadas, estipuladas no § 3º do art. 16 da MPV, o que pode ser objeto de sugestão de emenda, sem desnaturar o conteúdo da proposta, com o qual a entidade está de acordo. Eis o conteúdo da norma:
“Art. 16. As infrações previstas no art. 15 provocadas ou cometidas, isolada ou conjuntamente, sujeitarão os infratores, de acordo com a gravidade da falta, às seguintes penalidades:
I - advertência; e
II - multa.
........................................................................................................
§ 2º Os valores da multa a que se refere o inciso II do caput serão definidos em regulamento, de acordo com a infração cometida, a gravidade da conduta e as características da operação de transporte.
§ 3º Os valores da multa a que se refere o inciso II do caput serão estabelecidos entre o mínimo de R$ 550,00 (quinhentos e cinquenta reais) e o máximo de R$ 5.500.000,00 (cinco milhões e quinhentos mil reais), de acordo com o modo de transporte e os valores dos fretes informados no DT-e, na forma prevista em regulamento.
§ 4º Os valores da multa estabelecidos no § 3º poderão ser anualmente atualizados por meio de ato conjunto do Ministro de Estado da Infraestrutura e do Ministro de Estado de Minas e Energia, com base em índice de inflação a ser definido em regulamento.
Nesse sentido, sugere-se que seja adequado o valor da multa à infração administrativa cometida, sugerindo-se utilizar por analogia o valor da multa administrativa prevista na lei do vale pedágio, art. 5 º da Lei nº 10.209, de 23/03/2001, conforme texto e justificativa abaixo:
7-Sugestão de emenda ao § 3º, do artigo 16:
§ 3º Os valores da multa a que se refere o inciso II do caput serão estabelecidos entre o mínimo de R$ 550,00 (quinhentos e cinquenta reais) e o máximo de a R$ 10.500,00 (dez mil e quinhentos reais) a ser aplicada pelo órgão competente, na forma do regulamento.
8-Conforme caput do art. 16, as infrações sujeitas à multa são de natureza administrativa e estão prescritas no artigo 15[1]. Todas se referem à não emissão do DT-e; sua não disponibilização ao TAC; sua geração, cancelamento ou encerramento em desacordo com a MP ou com o regulamento; impedir a livre escolha do TAC ou equiparado para depósito ou pagamento da operação contratada; ou descontar o valor da geração ou a da tarifa de emissão do DT-e, do valor do frete.
9-Percebe-se, portanto, que todas essas penalidades se referem a questões de emissão do DT-e, cujo valor não é vinculado ao preço do frete, mas sim estipulado para cobrir os custos do serviço, sendo uma multa administrativa.
10-Assim, não é razoável vincular o valor da multa ao modo de transporte ou valor do frete, por quebra de referibilidade do valor da multa com o do do ato que o infrator deixou de praticar (ato punível), como o fez o § 3º do art. 16, para chegar à quantia exorbitante de R$ 5.500.0000,00 (cinco milhões e quinhentos mil reais), que extrapola em muito a tarifa para a emissão do documento, revelando a característica confiscatória e não apenas punitiva da multa.
11-A falta de referibilidade do valor da multa com a infração administrativa, e a sua estipulação desvinculada do valor da tarifa do ato administrativo cuja prática se pretende estimular, com valores exorbitantes, vinculados ao valor do frete, se mostra desarrazoada, a ponto de violar o princípio da proporcionalidade decorrente do devido processo legal, inscrito no art. 5º, LIV e art. 1º da CF, e o direito de propriedade do transportadores, gerando uma forma de arrecadação ilícita, ao invés de uma pena administrativa para desestimular a prática da infração administrativa.
12-O princípio da proporcionalidade decorre do devido processo legal substantivo (art. 5º LIV da CF) e do princípio do Estado de Direito (art. 1º, da CF), pois o legislador não tem liberdade total para criar obrigações aos particulares.
13-A atividade legislativa está limitada pelo princípio da proporcionalidade, nos seus três subprincípios: a) adequação do meio ao fim, ou finalidade; b) razoabilidade em sentido estrito ou racionalidade da medida; e c) da necessidade ou da proibição do excesso.
14-Veja-se o trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, no RE 349.703 a demonstrar que a jurisprudência do STF já incorporou que as medidas interventivas do Estado, sejam elas legislativas ou administrativas, devem respeitar o princípio da proporcionalidade nos seus três aspetos:
"O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida se revele a um só tempo adequada e menos onerosa. Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há também de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito). (Min. Gilmar Mendes, Voto-vista proferido no RE n. 349.703 , j. 3-12-2008)
15-Pela aplicação do primeiro subprincípio da conformidade ou adequação dos meios da medida (meio) ao objetivo pretendido (fim) deve ser verificado se os meios atendem ao fim buscado pela norma, que no caso é o desestímulo da prática do ato ilícito e não uma forma de arrecadar recursos do transportador.
16-Também não se observou o subprincípio da necessidade, pois um valor de multa muito mais baixo que o estipulado, seria igualmente eficaz para a consecução do objetivo pretendido de desestimular a prática da infração administrativa, portanto um meio menos gravoso/oneroso aos embarcadores que o do § 3º, art. 16, que se vêem diante de uma cobrança exacerbada e sem qualquer justificativa, pois não há referibilidade entre a gravidade da infração administrativa e o valor do DT-e.
17-Assim, a retirada de expressivo valor do patrimônio dos embarcadores sem qualquer justificativa plausível importa em efetiva violação do direito de propriedade, e em um enriquecimento sem causa por parte do poder público, que está se utilizando da multa com efeito arrecadatório.
18-Portanto, um valor muito aquém do estabelecido na MP é menos gravosa/onerosa ao direito do embarcador, para atingir o objetivo que é responsabilizá-lo pelo pagamento e emissão do DT-e na forma da lei.
19-Por fim, também resta violado o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, pois não há equilíbrio na intervenção do legislador, uma vez que dissociou a base de cálculo dessa multa da infração administrativa que visa reprimir - não emissão do DT-e na forma da lei - vinculando-a ao valor do frete.
20-Nesse ponto, destaco que o STF, na ADI 3378/DF, de autoria da CNI, na qual se discutiu a compensação ambiental, entendeu que a compensação ambiental - espécie de indenização - deveria guardar proporção com o impacto ambiental que esta busca indenizar/compensar, e não com o custo total do empreendimento, que era a base de cálculo fixada na lei (relator ministro Calos Britto, DJe 26.06.2008).
21-Nessa linha de entendimento do Supremo, a violação ao princípio da razoabilidade também é verificada nos casos em que a base de cálculo da exação - indenização/multa/compensação - esteja dissociada da causa da sua estipulação, ou seja, do prejuízo que esta visa indenizar, ou da infração administrativa que visa punir.
22-Para superar as inconstitucionalidades apontadas, sugere-se, por analogia, a fixação do valor da multa no caso, no mesmo valor da multa administrativa estipulada pelo não pagamento antecipado pelo embarcador do vale-pedágio, inscrito no art. 5 º da Lei nº 10.209, de 23/03/2001, verbis:
Art. 5º O descumprimento do disposto nesta Lei sujeitará o infrator à aplicação de multa administrativa de R$ 550,00 (quinhentos e cinquenta reais) a R$ 10.500,00 (dez mil e quinhentos reais) a ser aplicada pelo órgão competente, na forma do regulamento.
III - Conclusão
23-Pelo apoio da CNI, com a sugestão de emenda apenas para adequar o valor da multa administrativa aos princípios da proporcionalidade, não confisco e à garantia da propriedade, utilizando-se por analogia os valores da multa administrativa para estipulada na lei do Vale-Pedágio.
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6[1] Art. 15. Constitui infração punível com fundamento no disposto nesta Medida Provisória toda ação ou omissão que resulte em:
I - operar transporte sem prévia emissão do respectivo DT-e;
II - não disponibilizar DT-e emitido ao TAC, conforme previsto no art. 13;
III - gerar, utilizar, cancelar ou encerrar DT-e em desconformidade com o disposto nesta Medida Provisória ou em seu regulamento;
IV - condicionar o transportador a utilizar conta de depósitos ou de pagamento específica para a operação contratada, distinta daquela de livre escolha do TAC ou equiparado; e
V - descontar o valor do custo de geração ou a tarifa de emissão do DT-e do valor do frete contratado, de modo a acarretar prejuízo ao transportador.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se à pessoa física ou jurídica que, ao contratar, subcontratar, executar, intermediar ou intervir direta ou indiretamente na operação de transporte, cometer as infrações previstas no caput, sem prejuízo das sanções cíveis e penais cabíveis.
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Christina Aires é advogada da CNI