Combate ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância
Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância – Projeto para dispor sobre a prevenção a qualquer forma de tratamento discriminatório em função de raça ou de cor nas relações de consumo – Parecer pela inexistência de óbices jurídicos à aprovação das proposições.
por Alexandre Vitorino
EDIÇÃO 14 - ABRIL 2021
PL 2.646/2020 - Permite a criação de debêntures de infraestrutura - Expansão segundo o princípio do desenvolvimento sustentável - Investimentos para combater a crise COVID-19 - Demanda permanente do setor produtivo por investimento em infraestrutura - Apoio da CNI.
I- Objeto
1- Trata-se de análise jurídica do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 861/2017, que pretende aprovar o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na Guatemala, por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 5 de junho de 2013.
1.1- Eis os termos da proposição:
Art. 1º Fica aprovado, nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na Guatemala, por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 5 de junho de 2013.
Parágrafo único. Nos termos do inciso I do art. 49 da Constituição Federal, estarão sujeitos à aprovação legislativa do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão da referida Convenção, bem como quaisquer ajustes complementares que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Art. 2º Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.
2- Também será feita a análise do Projeto de Lei nº 5.294/20, que pretende alterar a Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), para dispor sobre a prevenção a qualquer forma de tratamento discriminatório em função de raça ou de cor nas relações de consumo e dá outras providências.
2.1- Eis o teor do PL:
Art. 1º A Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 4º (...)
IX – prevenção a qualquer forma de tratamento discriminatório em função de raça ou de cor.
Parágrafo único. Os fornecedores deverão implementar ações e programas de treinamento para os funcionários que atuem em contato direto com o público, inclusive pessoal terceirizado, a fim de combater qualquer tipo de tratamento discriminatório a consumidores. (NR)”
Art. 6º (...)
XI – a proteção contra qualquer tipo de tratamento discriminatório em função de raça ou de cor. (NR)”
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.2.2- Na justificação, o proponente defende a modificação do CDC para que seja explicitada a obrigação de implementar ações e programas de treinamento para os funcionários que atuem em contato direto com o público, inclusive pessoal terceirizado, a fim de combater qualquer tipo de tratamento discriminatório a consumidores.
II- Análise
Aspectos formais
3- No que toca ao PDC, compete ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, inciso I, da CRFB).
3.1- Após longa controvérsia sobre o alcance do §2º do art. 5º da Carta Brasileira e discussão sobre a vigência, entre nós, da tese da incorporação implícita de direitos fundamentais e do denominado bloco de direitos fundamentais, a Emenda Constitucional nº 45/2004 permite a incorporação de tratados de direitos humanos com eficácia de emenda à Constituição se houver aprovação em dois turnos, por 3/5 de cada uma das Casas Legislativas do Congresso Nacional.
3.2- No caso, vê-se que não foi adotado tal procedimento especial de incorporação, de modo que, consoante a interpretação atual firmada pelo STF, o tratado, por cuidar inegavelmente, de proteção a direitos humanos, será internalizado com precedência valorativa, mas hierarquia supralegal. Daí ter força para derrogar qualquer norma interna legal que disponha em sentido contrário, mas não para modificar o texto da Carta.
4- Com relação ao PL, compete à União legislar sobre normas gerais de proteção ao consumo, na forma do art. 24, inciso V, da CRFB.
4.1- Ademais, não há reserva de iniciativa presidencial quanto ao tema, em razão da taxatividade do §1º do art. 61 da Carta.
5- Em conclusão, não se identificam impropriedades formais na tramitação legislativa das duas proposições em análise.
Aspectos materiais
6- Quanto ao mérito do PDC, a convenção que o Congresso Nacional pretende aprovar por decreto legislativo é compatível com a Carta Magna, em especial com a ideia de igualdade material inserida no art. 3º.
6.1- A Carta pune exemplarmente o racismo e o considera crime imprescritível, além de preconizar medidas de ação orientadas à eliminação do preconceito racial na República.
6.2- Ademais, há diversos precedentes jurisprudenciais no STF que admitiram, no Brasil, a adoção de medidas de ação afirmativa e de equalização de oportunidades em face do paradigma da disparate impact doctrine, e os compromissos assumidos no tratado já são, em boa medida, objeto de legislação interna e de compromissos constitucionais que não podem ser reduzidos a mandamentos programáticos.
6.3- Assim, segundo a ótica do Supremo, não basta ao Estado deixar de discriminar ou punir quem discrimina; é preciso que atue positivamente no sentido de conceber soluções que eliminem a cultura da subordinação entre raças, oriunda da experiência da escravidão cativa na colônia e no Império e da mercancia de mão-de-obra humana (sobretudo em relação a negros e pardos).
6.4- Sobre a compatibilidade de medidas de ação afirmativa com a Constituição de 1988, seja para combater o preconceito racial, de gênero, ou o capacitismo (preconceito contra pessoas com deficiência), calha, entre outros precedentes, citar:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. POLÍTICA DE AÇÕES AFIRMATIVAS. INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR. USO DE CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL. AUTOIDENTIFICAÇÃO. RESERVA DE VAGA OU ESTABELECIMENTO DE COTAS. CONSTITUCIONALIDADE. RECURSO IMPROVIDO.
I – Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE nº 597.285, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 9/5/2012, DJe-053 18/3/2014)
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
I - Não contraria -- ao contrário, prestigia -- o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
II - O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.
III - Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.
IV - Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.
V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.
VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.
VII - No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação -- é escusado dizer -- incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.
VIII - Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente. (ADPF 186, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 26/4/2012, DJe-205 20/10/2014)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. ART. 9º DA LEI 13.165/2015. FIXAÇÃO DE PISO (5%) E DE TETO (15%) DO MONTANTE DO FUNDO PARTIDÁRIO DESTINADO AO FINANCIMENTO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS PARA A APLICAÇÃO NAS CAMPANHAS DE CANDIDATAS. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. REJEIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA À IGUALDADE E À NÃO-DISCRIMINAÇÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
1. O Supremo Tribunal Federal, ao examinar as alegações de inconstitucionalidade de norma, deve fixar a interpretação que constitucionalmente a densifique, a fim de fazer incidir o conteúdo normativo cuja efetividade independe de ato do Poder Legislativo. Precedentes.
2. O princípio da igualdade material é prestigiado por ações afirmativas. No entanto, utilizar, para qualquer outro fim, a diferença estabelecida com o objetivo de superar a discriminação ofende o mesmo princípio da igualdade, que veda tratamento discriminatório fundado em circunstâncias que estão fora do controle das pessoas, como a raça, o sexo, a cor da pele ou qualquer outra diferenciação arbitrariamente considerada. Precedente do CEDAW.
3. A autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais, pois é precisamente na artificiosa segmentação entre o público e o privado que reside a principal forma de discriminação das mulheres.
4. Ação direta julgada procedente para: (i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três” contida no art. 9º da Lei 13.165/2015; (ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, §3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhes seja alocado na mesma proporção; (iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do §5º-A e do §7º do art. 44 da Lei 9.096/95. (ADI 5.617, Relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 15/3/2018, DJe-211 3/10/2018)
7- Sendo a linguagem do tratado vaga e principiológica, grande parte das suas previsões dependerá, ainda, de densificação legislativa e da criação de políticas públicas específicas para a sua implementação.
8- Já em relação ao mérito do PL, a política aventada visa a aperfeiçoar mecanismos para que o princípio da isonomia alcance efetividade nas relações privadas e maximize, assim, a sua denominada eficácia horizontal. É consentânea, ainda, com a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação (1968), da qual a República Federativa do Brasil é signatária.
8.1- O direito à igualdade, consoante leciona a jurisprudência do STF, não se manifesta apenas em sua dimensão negativa em face do Estado (eficácia vertical), para constrangê-lo a não agir. O seu conteúdo não se resume a impedir o Poder Público de introduzir discriminações ilegítimas ou desarrazoadas.
8.2- Impede, da mesma forma, que tratamentos discriminatórios nocivos à dignidade dos cidadãos e a seus direitos da personalidade sejam praticados também nas relações entres particulares, especialmente em relações de conformação assimétrica, como as travadas no mercado de consumo ou no âmbito das relações de trabalho.
8.3- Desde o caso Lüth, em 1958, na Alemanha, há a compreensão, na doutrina constitucional comparada, de que os direitos fundamentais se impõem como ordem objetiva de valores, criando para o Estado o denominado dever de proteção em face da ação de violadores não estatais.
8.4- Legítima, portanto, é a ação do Estado voltada a editar legislação que proteja os indivíduos de ataques a direitos que provenham de outros particulares, bem como a ideia de vinculação de terceiros.
9- Ao lado da dimensão negativa, o princípio da isonomia projeta, ainda, uma dimensão positiva ou prestacional, que autoriza o Estado a implementar políticas públicas de proteção a grupos historicamente discriminados, como negros, homossexuais, minorias religiosas e portadores de deficiência, bem como a editar leis que obriguem particulares a atuar, afirmativamente, no sentido da eliminação da cultura da discriminação.
9.1- Nesse cenário, a medida concebida pelo legislador é adequada, pois almeja implementar programas privados obrigatórios de compliance de direitos fundamentais, em consonância estrita com os valores, finalidades e mandamentos constitucionais positivados no art. 3º da Carta.
9.2- É, ainda, necessária, segundo um juízo de prognose legislativa, pois o ataque à dimensão cultural e convivencial do racismo é medida muito pouco gravosa à liberdade de iniciativa.
9.3- Outras medidas mais gravosas têm, por sinal, sido abundantemente aventadas em projetos de lei inquinados de inconstitucionalidade, como a interdição de acesso de empresas condenadas por racismo a financiamentos públicos, à percepção de incentivos fiscais, ou mesmo à contratação com o Poder Público.
10- A ideia de promover um ataque cultural ao racismo no plano da atividade econômica conta, ainda, com bons exemplos internacionais no sentido de promover um ambiente não tóxico e dessegregado, na acepção mais ampla do termo.
10.1- Como demonstram os doll experiments no caso Brown v. Board of Education of Topeka (1954) e o próprio corpo da decisão que ordenou, nos EUA, a dessegregação escolar, uma das dimensões mais persistentes do comportamento discriminatório tem como pilar a perpetuação de mecanismos de apartheid cultural e social que podem ser problematizadas em programas de compliance de direitos fundamentais.
10.2- Dessegregar e educar para a igualdade tem sido o caminho também trilhado em Israel, em esforço convivencial de crianças palestinas e judias.
11- Na forma como concebido pelo PL ora analisado, o gravame imposto é, ainda, proporcional em sentido estrito, pois, embora estabeleça algum ônus econômico aos particulares para a sua implementação, é folgadamente compensado por ganhos na prevenção de violações a direitos fundamentais e na eliminação de ações de indenizações milionárias esporadicamente propostas contra as empresas violadoras.
12- Enfim, a ideia de implementação de programas de integridade (compliance) de direitos fundamentais também no âmbito privado vem-se desenvolvendo, de forma paulatina, em jurisdições democráticas mundo afora, como instrumento de promoção da igualdade, e tem sido aperfeiçoada para a substituição de medidas de ação afirmativa mais polêmicas, divisivas e restritivas, como a implementação de cotas raciais fixas na contratação de empregados, por exemplo.
III - Conclusão
13- Por todo o exposto, o parecer é no sentido da inexistência de razões jurídicas para a aprovação do PDC 861/2017.
13.1- Com relação ao PL 5.294/20, sendo a medida constitucional, harmoniosa com tratados internacionais dos quais o Brasil é parte e consentânea com os princípios que a CNI vem defendendo publicamente para o desenvolvimento da atividade econômica eficiente e humanizada no Brasil, o parecer é no sentido do endosso à proposição.
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Alexandre Vitorino é advogado da CNI