Por que o novo marco legal do saneamento básico é tão necessário?
por Leonardo Estrela Borges
EDIÇÃO 11 - JULHO 2020
Não há dúvidas de que o saneamento básico 1 no Brasil precisa ser revisto, sobretudo as atividades de abastecimento de água e esgotamento sanitário. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), o índice de abastecimento total de água no país chega a 83%, atendendo cerca de 170 milhões de pessoas 2. Por conseguinte, constata-se que quase 40 milhões de pessoas não possuem água encanada em casa.
Tal problema, que por si só já é de extrema gravidade, torna-se ainda mais impactante no momento de pandemia que vivenciamos, em que medidas mais rigorosas de higiene pessoal devem ser adotadas visando a evitar a propagação da doença e o contágio em massa da população. Em outros termos, há 40 milhões de brasileiros simplesmente impossibilitados de acatar as recomendações mais básicas de prevenção à COVID-19, sejam elas provenientes de instituições de saúde nacionais ou da própria Organização Mundial de Saúde (OMS).
Se os índices de atendimento total de água já são preocupantes, quando analisamos os indicadores regionalmente, constatamos que o problema é ainda mais grave em uma região específica do país: enquanto o Sul, Sudeste e Centro-Oeste possuem cerca de 90% de abastecimento, a região Norte apresenta um índice de somente 57% de residências atendidas com água potável.
Não bastasse o déficit de tratamento e disponibilização de água à população, os dados do Snis demonstram que quase 40% da água tratada sequer chega às residências brasileiras, pois se perde na distribuição. Apenas a título comparativo, o Japão tem uma perda de 7,3% na distribuição de água 3; a França, 20% de desperdício 4. Em outros termos, ao déficit de atendimento devemos somar a urgente necessidade de melhoria na eficiência da prestação do serviço.
Em relação ao esgotamento sanitário, os indicadores são realmente alarmantes. Pouco mais da metade da população brasileira é atendida com sistema de esgotamento sanitário (53,2%, segundo o Snis, o que corresponde a 107 milhões de pessoas). A situação é ainda mais grave quando se constata que, do total do esgoto coletado, apenas 46% recebe tratamento adequado antes de ser lançado em nossos rios. E os indicadores por região, assim como no abastecimento de água potável, demonstram as enormes disparidades em nosso país: enquanto o Sudeste possui quase 80% de coleta de esgoto; o Centro-Oeste, 52%; o Sul, 45%; o Nordeste, 28%; a região Norte, assustadoramente, possui apenas 10% de esgoto coletado 5.
Ressalte-se que não se trata de um problema tipicamente brasileiro. Há muito, a sociedade internacional se preocupa com o tema, tendo desenvolvido um verdadeiro direito humano ao saneamento 6. A própria Organização das Nações Unidas, em 2015, anunciou como um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”, estabelecendo como meta para 2030 o acesso universal e equitativo a água potável e segura e a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos 7.
Entretanto, percebe-se que, em relação a outros países, o Brasil ainda tem muito caminho a percorrer. De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a comparação do nosso país com uma amostra de outros países e de outros setores de infraestrutura sugerem uma anomalia, uma vez que, para o nível de PIB per capita do Brasil, seria esperável que a cobertura de tratamento de esgoto fosse muito maior 8. Em suma, o país deveria ter mais saneamento!
Diante dos péssimos indicadores nacionais, demonstrando a trágica situação do saneamento básico no país, faz-se necessário rediscutir amplamente quais são os verdadeiros problemas do setor e quais são as possíveis soluções para melhorar a universalização e a qualidade dos serviços disponibilizados à população.
Uma das soluções imediatas é rever a legislação existente, buscando novas formas de prestação do serviço e suprimindo aquilo que já se percebe não ter dado certo na busca pelo acesso a um serviço adequado e eficiente. Nesse sentido, merece elogios o Projeto de Lei 4.162/2019 (PL), aprovado pelo Congresso Nacional e encaminhado recentemente para sanção presidencial, pela boa intenção de “destravar” o setor e permitir inúmeras melhorias na prestação de tais serviços.
Dois pontos do texto aprovado merecem destaque, por aumentar a segurança jurídica do ambiente regulatório vigente e por proporcionar maior competitividade no setor, instituto fundamental para possibilitar a escolha da melhor proposta de prestação de serviço à população, com maiores ganhos de eficiência e de universalização.
Inicialmente, o projeto busca conferir maior harmonia regulatória para o setor, garantindo que de Norte a Sul do país existam regras minimamente uniformes para a prestação do serviço. Para tal, o projeto confere novas competências à Agência Nacional de Águas (ANA), destacando-se a instituição de normas de referência nacionais para a regulação dos serviços públicos de saneamento. Como, atualmente, existem quase 50 agências reguladoras de saneamento básico no Brasil, entre entidades estaduais, municipais e regionais, a padronização é não somente benéfica, mas igualmente necessária para garantir um ambiente de maior segurança jurídica e, consequentemente, de maior competitividade e concorrência entre as empresas públicas e privadas prestadoras do serviço.
O projeto ainda tem o mérito de expressamente estabelecer que tais normas a serem adotadas pela ANA devem promover a prestação adequada dos serviços e estimular a livre concorrência, a competitividade, a eficiência e a sustentabilidade econômica em tal prestação, assim como definir parâmetros para medição do cumprimento de metas de cobertura dos serviços, principalmente no que se refere à sua expansão, tendo em vista a desejada universalização.
Convém apenas salientar que, se por um lado, a padronização possui inúmeros benefícios, por outro lado, a ANA deve ter a devida cautela para realizá-la de forma generalista e constitucionalmente legítima, permitindo aos entes federados a necessária adaptação normativa às suas peculiaridades, ainda mais tendo em vista as disparidades regionais de atendimento acima analisadas. Em outros termos, as normas de referência devem respeitar o pacto federativo e, sobretudo a titularidade da prestação do serviço, que não pertence à União, mas aos Municípios, ainda que devam prestá-lo em conjunto com outros entes federativos quando houver interesse comum, como no caso de regiões metropolitanas, em que o respectivo Estado igualmente deve atuar 9.
O outro ponto que merece destaque é a regulamentação das formas de contratação no setor. O texto claramente dispõe que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular deve ser realizada por meio de contrato de concessão, mediante prévia licitação. Proíbe-se, assim a celebração de contratos de programa, convênios, termos de parceria ou outros instrumentos de natureza precária para a prestação de tais serviços. Esta medida proporciona concorrência no setor, permitindo que entidades mais capacitadas possam contribuir de modo mais eficaz com os objetivos de universalização de atendimento, sejam elas públicas ou privadas.
Faz-se necessário igualmente mencionar que o PL exige que os novos contratos possuam cláusulas específicas prevendo metas de expansão dos serviços, de redução de perdas na distribuição de água tratada e de qualidade na prestação dos serviços, o que não existe no cenário normativo atual, em que as delegações feitas pelos Municípios, em sua grande maioria sem licitação, não estabelecem metas claras de investimentos ou sequer de atendimento.
Até mesmo o receio de que empresas privadas só se interessem por áreas efetivamente rentáveis, deixando pequenos Municípios em dificuldade, foi afastado pelo PL, ao prever a prestação regionalizada dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços. Assim, a concessão pode ser feita mediante blocos de referência, agrupando-se Municípios não necessariamente limítrofes, incluindo assim em um mesmo bloco a ser licitado áreas lucrativas e localidades menos rentáveis.
Contudo, há uma ressalva que deve ser feita ao salutar incentivo à concorrência e competitividade no setor: a proposta infelizmente prevê a possibilidade de não somente se prorrogar os contratos de programa atualmente vigentes, como igualmente reconhecer e prorrogar as situações de fato de prestação não formalizadas por contrato administrativo, desde que feitos até 31 de março de 2022. Como a concessão pode ser feita por mais 30 anos, a prorrogação acaba afetando a própria eficácia do novo marco legal, prejudicando os possíveis ganhos imediatos decorrentes da concorrência entre empresas públicas e privadas no setor.
Em suma, o Projeto de Lei 4.162/2019, recentemente aprovado pelo Congresso Nacional, pode trazer novo alento ao saneamento básico no Brasil, propiciando os necessários – e vultosos 10 – investimentos que o setor precisa para alcançar os índices de atendimento previstos no Plano Nacional de Saneamento Básico, seja no atendimento de abastecimento de água potável, seja na coleta e tratamento dos esgotos domiciliares.
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Leonardo Estrela Borges é advogado da CNI
1- Ainda que, de acordo com a Lei 11.445/2005 (art. 3º, I), a expressão contemple quatro atividades distintas – abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana; e drenagem e manejo das águas pluviais – cada uma com seus próprios problemas e com infinitas possibilidades de melhoria, o foco deste artigo serão aquelas atividades que, para o senso comum, representam os verdadeiros “serviços de saneamento” prestados à população: o abastecimento de água potável e o esgotamento sanitário.
2- Dados de 2018, disponíveis em http://www.snis.gov.br.
3- MINISTRY OF HEALTH, LABOR AND WELFARE OF JAPAN, dados disponíveis em https://www.mhlw.go.jp/english/policy/health/water_supply/8.html.
4- CHAILLOT, Luc. “Eau: la fin du grand gaspillage?”, 29 de abril de 2018, disponível em https://www.ledauphine.com/environnement/2018/04/29/eau-la-fin-du-grand-gaspillage.
5- Dados de 2018, disponíveis em http://www.snis.gov.br.
6- SMETS, Henri. “Le droit de l’homme a l’eau et a l’assainissement est finalement reconnu”, in Revue juridique de l’environnement, vol. 36, 2011/1, p 79-89.
7- Trata-se do Objetivo 6. ONU, Doc. A/Res/70/1, Transformer notre monde: le Programme de développement durable à l’horizon 2030.
8- CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA. Comparações internacionais: uma agenda de soluções para os desafios do saneamento brasileiro. Brasília: CNI, 2017, p. 25.
9- Na ADI 1842, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o titular do serviço de saneamento é o Município e o Distrito Federal, que exercem sua titularidade nas suas respectivas áreas geográficas. Entretanto, quando houver interesse comum, o exercício da titularidade dos serviços de saneamento deve ser realizado em conjunto com outros titulares e com os Estados.
10- Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), seriam necessários investimentos da ordem de R$16 bilhões anuais entre 2016 e 2033 para universalizar os serviços. MINISTÉRIO DAS CIDADES, Plano Nacional de Saneamento Básico. Brasília, 2014, p. 160.