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A Covid-19 foi considerada doença ocupacional pelo Supremo?

por Fernanda de Menezes Barbosa e Cassio Augusto Borges

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EDIÇÃO 10 - MAIO 2020
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Com a pandemia do Covid-19 desembarcando no Brasil e o Congresso Nacional decretando estado de calamidade pública, União, estados, municípios e o DF agiram para conter a propagação do coronavírus, determinando medidas de contenção social, em maior ou menor extensão, sob o controle atento do Poder Judiciário (ADIs 6.341 e 6.343).

 

Essas medidas paralisaram atividades não essenciais que ocasionaram o desaquecimento da economia. Os empregadores, essencialmente os pequenos e médios, ante a inexistência de saídas legislativas viáveis e compatíveis com a excepcionalidade do momento, acabaram expostos a situações de insegurança jurídica e econômica, sem capacidade para criar soluções que pudessem proteger seus negócios e empregados.

 

Atento a esse grave problema de índole econômico-social, o Poder Executivo editou a Medida Provisória (MPV) 927/2020, estabelecendo medidas pontuais, temporárias e razoáveis para o enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado de calamidade pública e para a preservação do emprego e da renda.

 

Na contramão do fluxo, alguns atores se insurgiram contra a MPV e questionaram a sua validade constitucional perante o Supremo Tribunal Federal (STF) (ADIs 6.342, 6.344, 6.346, 6.349, 6.352 e 6.354). De forma bastante abreviada, sustentam que a MPV ofende diversas garantias constitucionais, a exemplo da irredutibilidade salarial, a não ser por negociação coletiva; da proteção dos direitos sociais do trabalho; e da vedação do retrocesso com a flexibilização desses direitos.

 

O relator dessas ações, o ministro Marco Aurélio, negou as liminares que pediam a suspensão integral da MPV ou, a depender do pedido e da ação, alguns de seus dispositivos. Ao analisar essa decisão, o Plenário do STF, por maioria, decidiu não a referendar quanto aos artigos 29 e 31.

 

Visto sob outro ângulo, a maioria dos ministros suspendeu esses dois artigos.

 

O art. 29 diz que a Covid-19 não é doença ocupacional, salvo mediante comprovação do nexo causal. A maioria dos ministros defendeu ser ele excessivamente oneroso aos trabalhadores de atividades essenciais que seguem expostos à Covid-19, como médicos e enfermeiros. Mesmo reconhecendo que a demonstração do nexo causal para esses profissionais seja mais fácil, esses ministros disseram que, para os demais empregados, a exemplo dos que trabalham em farmácias, supermercados e com entregas de alimentos em domicílio, haveria maior dificuldade para a sua comprovação. A prova chegou a ser chamada de diabólica.

 

Já o art. 31 estabelece que os auditores fiscais do trabalho devem agir de maneira orientadora por um período de 180 dias, exceto quanto à falta de registro de empregado, a partir de denúncias; a situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação; à ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e a trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.

 

Sobre este artigo, os ministros, nem todos, ponderaram que o estabelecimento de uma fiscalização menos efetiva atentaria contra a própria saúde do empregado e em nada o auxiliaria neste período da pandemia, em que direitos trabalhistas estão sendo relativizados.

 

Das duas suspensões, a decisão que mais repercutiu foi a primeira. Desde então, há quem defenda que o STF teria declarado a Covid-19 como ocupacional e há quem diga que a presunção, agora, é pela caracterização da Covid-19 como doença do trabalho, cabendo ao empregador fazer a prova de que o seu empregado não a contraiu no ambiente laboral.

 

Com absoluto respeito aos que pensam de uma forma ou de outra, esta não parece ser a interpretação adequada do julgado.

 

Para que uma doença seja considerada ocupacional, haverá de observar o art. 20 da Lei 8.213/1991, que dispõe sobre os conceitos de doença profissional e do trabalho. Estas duas espécies conformam o gênero doença ocupacional, expressão utilizada pelo suspenso art. 29.

 

A doença profissional (art. 20, I) pressupõe o exercício peculiar de determinada atividade e que essa enfermidade conste da lista produzida pela Previdência Social. Por razões não só legais, mas também fáticas, a Covid-19 não é nem poderá ser considerada doença profissional.

 

E para que determinada enfermidade seja considerada doença do trabalho (art. 20, II) é necessário que haja relação direta da atividade desempenhada pelo empregado com as condições especiais em que ela é exercida, conforme listas previamente publicadas, ou, ainda que não contida na relação previdenciária, caso seja reconhecido o nexo de causalidade.

 

O mesmo art. 20 enumera aquelas que não serão consideradas doenças do trabalho. Deste rol, a que aqui interessa é a doença endêmica, isto é, a contraída por pessoa habitante de região em que ela se desenvolva. Somente será considerada doença do trabalho se comprovadamente for resultante de exposição ou de contato direto determinado pela natureza do trabalho. Já há profissionais defendendo que a Covid-19 é uma doença endêmica de elevada gravidade e alcance, decorrente de sua abrangência geográfica e, portanto, somente será ocupacional, caso evidenciado o contato direto do empregado ao vírus ou a sua exposição a ele.

 

Endêmica ou não, a caracterização da Covid-19 como ocupacional depende da comprovação do nexo de causalidade, que precisa ser direto, decorrente de determinada peculiaridade do trabalho.

 

Isso significa que a Covid-19 não deve ser presumida como ocupacional. Foi isto que o art. 29 da MPV buscou evidenciar ao simplesmente reproduzir a sistemática constitucional e legal previdenciária vigente.

 

O art. 29 não desamparou os empregados nem lhes conferiu onerosidade excessiva para caracterizá-la como doença do trabalho. Evidenciado o vínculo fático entre o efeito e a causa, entre a Covid-19 e o trabalho exercido, a sua caracterização como ocupacional se impõe.

 

E a demonstração desta evidência nada tem de diabólica, bastando ao empregado comprovar que, em razão do seu ofício, mantinha contato com o vírus ou a ele estava diretamente exposto ou, ainda, que as suas condições peculiares de trabalho (ambiente laboral) deram causa à contaminação.

 

Como mencionado pelos ministros do STF que votaram pela suspensão do art. 29 da MPV, é o que ocorre com os profissionais de saúde que tiveram contato com o vírus, seja por meio de análises laboratoriais, seja pelo cuidado dos pacientes contaminados, ou, ainda, com os profissionais responsáveis pela preparação dos corpos para procedimentos de enterro. As demais exposições ao vírus, ocorridas no ambiente social do empregado, não podem ser automaticamente colocadas na conta do empregador.

 

Atenta a isso, a CNI pediu ao ministro Marco Aurélio para participar das ações na qualidade de amicus curiae. Sobre a suspensão do art. 29, a entidade escreve haver um justo receio de que “incentive interpretações e medidas administrativas e judiciais que a [Covid-19] presumam ocupacional, ou ainda, que desvirtuem a lógica do nexo de causalidade, entendendo que o mero exercício de atividade laboral (seja ela qual for) durante a pandemia já basta para a prova de contaminação”.

 

A Covid-19 é uma doença séria e precisa ser objeto de medidas preventivas e tratada. O que não se pode fazer é simplesmente considerá-la ocupacional, independentemente de qualquer juízo valorativo das condições laborais, e imputar ao empregador o ônus de provar que a contaminação não ocorreu em seu estabelecimento comercial ou industrial.

 

Isso sim será uma prova diabólica, porquanto negativa, especialmente em relação aos empregados que não manipulam o vírus da Covid-19 e que estão sujeitos a contraí-lo socialmente.

 

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Fernanda de Menezes Barbosa e Cassio Augusto Borges são, respectivamente, advogada e Superintendente Jurídico da CNI

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