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Alterações no marco legal do saneamento básico

por Leonardo Estrela Borges

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EDIÇÃO 6 - ABRIL 2019
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I- Objeto

1- Trata-se de análise jurídica da medida provisória (MPV nº 868/2018) que atualiza o marco legal do saneamento básico e modifica as Leis nº 9.984/2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas (ANA) competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento; nº 10.768/2003, para alterar as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos; nº 11.445/2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no país; e nº 13.529/2017, para autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados.

2- Convém ressaltar que esta medida é uma reedição da MPV nº 844/2018 (analisada na quarta edição deste Boletim), com algumas alterações pontuais que serão abaixo analisadas, em razão de o seu prazo de vigência ter se encerrado no dia 19 de novembro do ano passado.

 

II - Análise

II.1 - Aspectos Formais

3- Não há impedimentos jurídicos formais à proposta, uma vez que a MPV não trata dos temas previstos no art. 62, § 1º, da Constituição Federal. Quanto à relevância e urgência, o STF possui jurisprudência muito restritiva ao analisar os motivos que levaram o Executivo a considerar a conveniência de adoção de uma MPV.

II.1 - Aspectos Materiais

4- A MPV nº 868/2018 realiza, de um modo geral, duas grandes alterações ao direito vigente: confere à ANA competência regulatória no assunto e estabelece o fim da dispensa de licitação para a contratação das companhias estaduais, possibilitando ao setor privado competir com o setor público de saneamento pela prestação dos serviços.

5- Em relação às novas competências da ANA, faz-se necessário analisar politicamente se tal mudança é conveniente ao setor industrial, uma vez que, no que se refere à gestão de águas, esta agência sempre se posicionou de modo excessivamente centralizador e por vezes contrário aos interesses industriais, mesmo tendo a Lei nº 9.433/1997 estabelecido claramente o princípio da descentralização do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh).

6- Em outros termos, se com normativo expresso estabelecendo a descentralização, constata-se frequentemente o desrespeito a este princípio, o receio de que no saneamento não haja a devida consideração a políticas e normas locais tem fundamento. Destaca-se, por exemplo, tal dispositivo que pode gerar problemas ao setor industrial:

Art. 4º .....

XXIII - declarar a situação crítica de escassez quantitativa ou qualitativa de recursos hídricos [...] em rios de domínio da União [...].

7- Ressalte-se que o texto foi ligeiramente alterado na MPV nº 868/2018, que estabeleceu limites a esta prerrogativa da ANA: a situação deve ser declarada “por prazo determinado, com base em estudos e dados de monitoramento, observados os critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, quando houver”. Há, portanto, melhoria no texto, mas permanece a inconveniência da proposta.

8- Outro ponto que merece destaque jurídico é o fato de que a MPV adequou a Lei de Saneamento Básico à decisão do STF na ADI 1.842, estabelecendo que o titular do serviço é o Município e o Distrito Federal, que exercem sua titularidade nas suas respectivas áreas geográficas. Entretanto, quando houver interesse comum, o exercício da titularidade dos serviços de saneamento deve ser realizado em conjunto com outros titulares e com os Estados. O problema que pode ocorrer é que, ao mesmo tempo em que reafirma a posição do STF em estabelecer o Município como o titular do serviço, praticamente o sujeita às normas de referência nacionais elaboradas pela ANA. Neste aspecto, portanto, podemos vislumbrar discussões quanto à constitucionalidade da MPV, sobretudo seu art. 4º-D (art. 4º-B na MPV anterior):

Art. 4º-D. O acesso aos recursos públicos federais ou à contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal, quando destinados aos serviços de saneamento básico, será condicionado ao cumprimento das normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico estabelecidas pela ANA, observado o disposto no art. 50 da Lei nº 11.445/2007.

9- Competirá igualmente à ANA definir padrões de qualidade dos sistemas de saneamento básico, função que já é exercida pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que, devemos ressaltar, possui representantes do setor industrial. A medida pode gerar normas conflituosas, competindo à área técnica analisar se a mudança é ou não conveniente. O receio é criar insegurança jurídica, uma vez que padrões de emissão sempre foram definidos pelo Conama, de acordo com a Lei nº 6.938/1981.

10- De todo modo, a padronização de regramentos ao setor pode ser benéfica às grandes empresas privadas de saneamento, uma vez que não mais terão que se adequar aos normativos específicos das quase 50 agências reguladoras de saneamento existentes no Brasil, entre entidades estaduais, municipais e regionais. O problema é saber qual a abrangência que a ANA dará à sua nova função de instituir “normas de referência nacionais para a regulação da prestação de serviços públicos de saneamento básico”. A MPV nº 868/2018 inova em relação à anterior ao prever a realização de audiências públicas e possibilitar a análise de impacto regulatório das normas propostas, mas ao prever a possibilidade de se adotar as melhores práticas regulatórias do setor, corre-se o risco de estabelecer uma regulamentação muito rigorosa (ou muito flexível) para determinadas regiões, uma vez que a situação do saneamento é completamente heterogênea, conforme dados oficiais do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS):

Níveis de atendimento com água e esgotos dos municípios cujos prestadores de serviços são participantes do SNIS em 2016, segundo região geográfica e Brasil

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10.1 - Em relação à coleta de esgoto, por exemplo, enquanto a região Sudeste possui quase 80% de coleta efetiva, a região Norte possui apenas 10%. Ainda que não existam impedimentos jurídicos ao proposto pela MPV, tais dados apenas evidenciam a dificuldade – e os riscos – de se prever uma única regulamentação contemplando situações técnicas, econômicas, sociais e locacionais tão diferentes. De todo modo, compete à área técnica da CNI determinar se a proposta é conveniente ou não aos interesses industriais – como ressaltado anteriormente, a padronização pode ser benéfica, caso realizada de modo generalista e permitindo aos entes federados a necessária adaptação normativa às suas peculiaridades.

11- Quanto ao aumento da competitividade e a possibilidade de o setor privado participar mais ativamente do saneamento do país, não há dúvidas acerca da conveniência da medida, tendo a nova MPV diminuído o período de vacatio legis deste item para 12 meses após a data de sua publicação (a MPV nº 844/2018 previa um período de 3 anos). Trata-se do art. 10-C, que obriga os prefeitos municipais a publicar edital de chamamento público com o objetivo de contratar a proposta mais vantajosa para a prestação do serviço de saneamento:

Art. 10-C. Nas hipóteses legais de dispensa de licitação, anteriormente à celebração de contrato de programa, previsto na Lei nº 11.107/2005, o titular dos serviços publicará edital de chamamento público com vistas a angariar a proposta de manifestação de interesse mais eficiente e vantajosa para a prestação descentralizada dos serviços públicos de saneamento.

11.1 - Outra mudança pontual é a necessidade de ampla divulgação do edital de chamamento público, ponto positivo que só reforça o desejo de maior competitividade no setor.

12- Destaque-se que a MPV nº 868/2018, do mesmo modo que a anterior, adota medida há muito tempo defendida pela CNI: a alteração do conceito de esgotamento sanitário, permitindo que o setor industrial possa utilizar água de reúso proveniente de empresas de esgotamento sanitário, ou melhor, conferindo a necessária segurança jurídica à aquisição de água de reúso de empresas de saneamento. Trata-se de ponto extremamente positivo da norma e que merece ser apoiado.

13- Por fim, esta medida provisória inova em relação à anterior ao alterar a Lei nº 13.529/2017, possibilitando à União participar de fundo com a finalidade de financiar o planejamento e o gerenciamento de ações de saneamento básico e a execução de obras de infraestrutura. Não há óbices jurídicos ao proposto, competindo à área técnica definir a conveniência da medida.

 

III - Conclusão

14- Há alterações jurídicas convenientes ao setor industrial e, de um modo geral, a MPV é benéfica. Entretanto, o apoio ou não ainda deve ser respaldado por considerações técnicas, principalmente no que se refere às novas competências regulatórias conferidas à ANA.

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Leonardo Estrela Borges é advogado da CNI

 

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