Primeiras impressões sobre o projeto de lei que pretende alterar a lei de falências
por Julio César Moreira Barbosa
EDIÇÃO 3 - JULHO 2018
Relatório
Trata-se de análise do projeto de lei nº 10.220/2018, de autoria do Poder Executivo, que pretende "atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária", matéria regida atualmente pela Lei 11.101/2005.
A proposta também alcança a Lei 10.522/2002, que dispõe sobre créditos não quitados de órgãos e entidades federais, para regular parcelamento para os empresários ou a sociedades empresárias que pleitear ou tiver deferido o processamento da recuperação judicial, protocolo da petição inicial da recuperação judicial, que poderá liquidar os seus débitos para com a Fazenda Nacional vencidos até a data do protocolo da petição inicial da recuperação judicial, de natureza tributária ou não tributária, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa.
Considerando que a proposta apresenta modificações em vários dispositivos da Lei 11.101/2005, para fins de melhor compreender a avaliação será feita uma análise global da proposta, e, eventualmente, tecidas considerações sobre pontos específicos do PL. (Obs.: esta análise não abrange as questões tributárias, como também não trata dos dispositivos relativos à insolvência transfronteiriça, reguladas na proposta nos artigos 167-A a 167-V.)
Opinião
1- Abrangência da proposta
Ao contrário do que defendido pela CNI ao longo de discussões sobre a modernização da Lei 11.101/2005, o texto proposto vai além de modificações pontuais para, em realidade, conceber um novo modelo de recuperação judicial e de falências.
Alguns dos dispositivos propostos já foram analisados pela Diretoria Jurídica da CNI em propostas legislativas anteriores, a exemplo do PL 9.722/2018, que propunha alterações substanciais na Lei. Naquela ocasião, opinou-se, resumidamente, da seguinte forma:
PL 9722-18. Propõe mudanças substanciais nas Lei 11.101/05, que regula a falência, e a recuperação judicial e extrajudicial. Além dos pontos destacados nas análises realizadas ao longo do PL, considerando que dispomos de uma legislação bastante atual, sobre a qual o Poder Judiciário vem criando positiva orientação jurisprudencial, não nos parece oportuno, nesse momento, uma revisão do direito recuperacional e de falência, com a envergadura e abrangência proposta. Nesse contexto, eventualmente a CNI poderia apoiar apenas as mudanças, pontuais, cujas análises encontram-se destacadas em vermelho, sendo que as demais não merecem o apoio desta entidade.
2- Dos privilégios da Fazenda Publica
Noutro sentido, percebe-se a inserção na proposta de diversas referências às Fazendas Públicas, que têm seus direitos de crédito ampliados, tanto na recuperação judicial quanto na falência. Nesse sentido, é possível citar as seguintes alterações propostas que privilegiam as Fazendas Públicas, em que pese seus créditos não participarem da recuperação judicial:
a) o art. 6º, § 7º, permite a constrição de bens e alienação de bens e direitos nos juízos em que se processam exigências das fazendas públicas, retirando o poder, sobre esses atos, do juízo recuperacional. Vale dizer que a possibilidade de alienação de bens, como proposto, é matéria sujeita a discussões judiciais, inclusive está sob o crivo do STJ, em regime de recurso repetitivo (Tema 987: Juízo competente e atos de constrição ou alienação de bens ao patrimônio do devedor no plano de recuperação judicial), que deverá avaliar a possibilidade desses atos de alienação frente aos objetivos da recuperação judicial;
b) o art. 7º-A acrescenta um procedimento próprio para habilitação de créditos das Fazendas Publicas, bem como adiciona a necessidade de o administrador ordenar a intimação eletrônica das fazendas publicas, assim como já faz para o Ministério Publico (art. 52, V). Aliás, soa estranho e contraditório obrigação de as Fazendas Publicas informarem ao juízo recuperacional os créditos existentes contra as empresas, "para divulgação aos demais interessados";
c) o art. 36, § 4º, prevê a intimação das Fazendas Públicas da realização da assembleia dos credores, ainda que o crédito publico não seja submetido à recuperação judicial;
d) as hipóteses do art. 39, § 4º, de meios alternativos de realização de assembleia geral, contradizem as prerrogativas das Fazendas Públicas trazidas no art. 36, § 4º;
e) alterando a sistemática atual, a inclusão de menção ao § 1º do art. 141, no art. 60, que trata da venda de unidades produtivas, implica na sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, o que desestimula essa alienação;
f) o art. 94-A, opondo-se ao entendimento já firmado na jurisprudência quanto à impossibilidade de esses entes formularem pedidos de falências, traz uma regra permissiva, ainda que exista meio próprio para cobrança de dívidas fiscais (Lei de Execuções Fiscais), que não são paralisadas em função da recuperação judicial ou de falência;
g) pela proposta do art. 129, inciso I, é também permitido o pagamento antecipado de obrigações de direito público, mesmo não vencidos, sem que isso seja considerado ineficaz perante à massa falida.
Portanto, a norma, ainda que voltada para o objetivo de recuperar a capacidade econômica da empresa, ou de encerrar suas atividades quando não é mais possível sua recuperação, apresenta várias regras que apenas trazem mais privilégios para as Fazendas Públicas.
3- Das propostas apresentadas pela CNI
Em relação às propostas apresentadas pela CNI, quando foi chamada para participar de reunião com técnicos do Ministério da Fazenda para tratar de propostas de mudanças pontuais na Lei de Falências e Recuperação Judicial, assevera-se que:
a) a adoção de arbitragem como meio alternativo de solução da recuperação judicial nos termos da Lei nº 9.307/1996, é apenas parcialmente adotada pela proposta. Nesse sentido, o § 12 do art. 6º propõe que "A decretação da falência ou o ajuizamento de pedido de recuperação judicial não impede a adoção da via arbitral, hipótese em que caberá ao juízo da recuperação a determinação da qualificação do crédito". Não se enxerga, nessa proposta, a via arbitral como uma via alternativa e autônoma para a viabilização da recuperação judicial, até porque o juízo da recuperação competente deverá participar do procedimento, determinando a qualificação do crédito;
b) a exigência da Certidão de Dívida Ativa (CDA), principalmente pela não revogação do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN), permanece para o deferimento da recuperação judicial;
c) o PL não acata a proposta de submissão também dos créditos garantidos por cessão fiduciária à recuperação, hipótese restringida pelo art. 48, § 3º, da Lei 11.101/2005.
Portanto, essas propostas apresentadas pela CNI, pontuais e necessárias para dinamizar especialmente a recuperação judicial, não são atendidas pelo PL em análise.
4- Questões pontuais
Pontualmente, tentando demonstrar a impropriedade do PL, na extensão produzida, fazemos as seguintes considerações exemplificativas:
a) o art. 27, § 4º impede o membro do comitê de credores de votar quando houve “interesses conflitantes”. Ora, considerando que cada credor deseja receber seu quinhão, a caracterização do que venha a ser "interesse conflitante" fica difícil. Por outro lado, o art. 37, § 6º, prevê que o credor pode votar “no seu interesse”, o que se torna incongruente com a regra anterior;
b) o art. 43, III, menciona um inexistente art. 26-A;
c) o art. 45, § 2º, contrariando a sistemática defendida pela CNI, segundo a qual todos os credores devem se submeter á recuperação judicial, cria privilégio para os créditos com garantia real, que seriam garantidos até o valor do bem gravado na data do ajuizamento da recuperação judicial;
d) a proposta de financiamento inserida em novos dispositivos, a partir do art. 69-A a 69-I, tenta trazer a minúcias tema que poderia ser tratado dentro da obrigação legal do devedor apresentar a discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados, conforme art. 53, I, para deliberação dos credores. Há, aqui, aparente intromissão legal desnecessária na esfera privadas dos credores e devedor;
e) há alteração na regra que impede os credores que não tenham o valor e as condições do seu crédito alteradas. Pela proposta, a participar da votação é uma possibilidade, a seu critério, ainda que o plano não lhes traga nenhum prejuízo. (art. 45, § 5º). Aliás, esse dispositivo está totalmente contrário ao que estabelecer o art. 45-A, § 5º, que trata o mesmo tema (direito a voto do credor e composição do quórum de deliberação) de modo diverso;
f) a redação do art. 49 reduz os créditos que podem se submeter à recuperação judicial, além de deixar expressamente a ressalva da cobrança de créditos fiscais;
g) o plano de recuperação, com os detalhes exigidos no art. 53, pode inviabilizar a recuperação judicial. Aliás, considerando ser interesse da empresa em manter suas atividades, as exigências genéricas existentes no atual art. 53 já seriam suficientes para embasar a tomada de decisão pelos credores;
h) não é possível antever, ao certo, o resultado das inovações apresentadas pelo art. 54, que, em regra, reduz para 30 dias o pagamento dos créditos trabalhistas de até 5 salários mínimos que especifica, de natureza estritamente salarial vencidos nos três meses anteriores ao pedido de recuperação judicial (deve ser considerando frente ao objetivo de norma, previsto expressamente no seu art. 47);
i) parece incongruente que o art. 54-A permita a hipótese de o próprio plano de recuperação judicial prever que os credores possam aceitar modificações no plano, vinculando os dissidentes. Ter-se-ia uma espécie de ultra-atividade da recuperação judicial, mesmo quando já encerrada, o que pressupõe o cumprimento do plano apresentado;
j) novidade do art. 56, que prevê a destituição do gestor da devedora que não concorda com o plano de recuperação colocado em votação para os credores. Na regra atual, o plano de recuperação alterado pela assembleia geral deveria ser aprovado pelo devedor (art. 56, § 3º). Pode constituir um desestimulo aos pedidos de recuperação judicial de empresas - ao menos em princípio - viáveis economicamente;
k) o art. 58-A usa o termo convolar, quando, em verdade, a recuperação judicial ainda não foi deferida;
l) o art.69-M traz uma hipótese que considerada anômala ao processo de recuperação judicial. O dispositivo cria uma nova hipótese de desconsideração de personalidade jurídica, que pode ser determinada de oficio pelo juiz, mesmo quando a empresa não esteja submetida a recuperação judicial. Em relação à consolidação substancial proposta, não somente os ativos e passivos das empresas seriam consolidados, mas, em razão da desconsideração da personalidade proposta no § 1º, implicaria também, de forma imediata, os bens das pessoas físicas por elas responsáveis. Ademais, Tratando-se de uma norma que visa, em primeiro lugar, o restabelecimento da capacidade empresarial de uma pessoa jurídica episodicamente submetida a dificuldades, entendemos que a introdução de regra relativa à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica vai contra os objetivos da própria norma.
Em alguns dispositivos, a proposta parece pretender resolver controvérsias já postas ao crivo do Judiciário. Exemplo desse fato está na nova delimitação dos créditos sujeitos à recuperação judicial, nos termos do art. 49. Contudo, pondera-se, nada afasta que essa nova redação também não seja origem de outras controvérsias. Exemplo claro dessa situação é a inclusão de créditos trabalhistas constituídos (por sentença) após o pedido de recuperação judicial (art. 49, § 7º), matéria que ainda não encontra decisão nítidas nos tribunais.
Nessa mesma linha de entendimento, se verifica a proposta para o art. 49, § 13, que trata da separação do patrimônio de afetação dos créditos sujeitos à recuperação judicial, tema que ganhou relevância a partir de pedidos formulados por grandes construtoras, e que ainda pede um entendimento definitivo.
Ainda no art. 49, § 10, a regra proposta, de não resolução dos créditos bilaterais, colide com o entendimento assentado segundo o qual ocorre novação dos créditos na recuperação judicial. Isto é, a partir da homologação do procedimento, surge uma nova obrigação para a empresa recuperanda, e um novo direito de crédito para o credor, segundo os termos homologados.
No mais, alguns dispositivos tratam apenas de atualizar a norma, sem alteração substancial do seu conteúdo, a exemplo do art. 66, que altera a nomenclatura "ativo permanente" para "ativo não circulante", ou a menção ao novo CPC, conforme proposto o conteúdo para o § 1º do art. 59 e para o art. 134, caput.
Conclusão
Os pontos acima explicitados são suficientes para recomendar o não apoio da CNI ao PL 10.220/2018, sendo o caso de apenas realizar alterações pontuais na Lei 11.101/2005, como sempre tem defendido a entidade.
Essas são as primeiras impressões, que não prejudicam, e até justificam, o aprofundamento da reflexão.
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Julio César Moreira Barbosa é advogado da CNI
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