Suprema indecisão
por Alexandre Vitorino Silva
EDIÇÃO 2 - ABRIL 2018
No início do Ano Judiciário de 2018, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade que tratava do tema da proibição regulatória dos aditivos incorporados ao cigarro (ADI nº 4.874).
Se, por um lado, o exame da ação direta foi, enfim, encerrado – após quatro anos de tramitação e nada menos do que dez adiamentos sucessivos, em razão de constantes alterações da pauta do plenário promovidas pela presidência –, por outro, todo o esforço argumentativo empreendido pelos ministros não foi suficiente para trazer segurança jurídica e previsibilidade ao futuro do setor fumageiro.
Ao fim e ao cabo, a questão constitucional relativa à eventual violação dos princípios da separação de poderes e do princípio da legalidade pela Resolução RDC/ANVISA nº 14 terminou empatada.
Contribuiu, é certo, para essa suprema indecisão, em 5 x 5, o fato acidental de o ministro Luís Roberto Barroso não ter podido participar do julgamento do caso. Contratado como parecerista para opinar sobre o caso quando era advogado, o jurista, hoje alçado à Suprema Corte, não se sentiu confortável para, mesmo em um exame abstrato da questão, examinar o problema da inconstitucionalidade da RDC 14.
Esse fator, somado à divisão paritária do plenário, gerou cenário inusitado em que a questão da constitucionalidade da resolução foi resolvida – se é que se pode usar tal forma verbal do particípio sem ferir a verdade – sem efeito vinculante, por não ter alcançado o quórum de maioria absoluta exigido pela Constituição.
Na prática, é como se o Supremo Tribunal Federal, depois de todos esses anos de contenda, não tivesse mais do que exercido uma jurisdição sem força coercitiva no caso. Em consequência disso, os tribunais de hierarquia inferior e os juízes de primeiro grau poderão rediscutir a questão da inconstitucionalidade da RDC 14 livremente, sem qualquer submissão às conclusões alcançadas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.
É justamente por força dessa liberdade judicante conferida aos magistrados de instâncias inferiores que a indústria fumageira viveu para lutar um dia a mais e, hoje, amparada por decisões liminares proferidas em ações coletivas e individuais, ainda pode continuar a vender o cigarro tal como o consumidor brasileiro o conhece há mais de 100 anos, na fórmula Straight Virginia, que é a da folha de tabaco tratada com aditivos diversos.
Mas o ideal é que pudesse fazê-lo em ambiente calculável, previsível e seguro, o que, desafortunadamente, não é ainda o caso, em razão do supremo empate. Já se disse, nesse sentido, por sinal, em famoso julgamento da Suprema Corte Norte-Americana, que a liberdade não encontra refúgio em uma jurisprudência de dúvidas (Casey v. Planned Parenthood).
Exatamente na linha desse famoso precedente, o julgamento proferido pela Suprema Corte Brasileira foi uma oportunidade perdida para demarcar os limites do poder normativo das agências regulatórias brasileiras e para assentar o seu lugar institucional diante da separação de poderes.
"o julgamento proferido pela Suprema Corte Brasileira foi uma oportunidade perdida para demarcar os limites do poder normativo das agências regulatórias brasileiras e para assentar o seu lugar institucional diante da separação de poderes".
Como a agência integra o conceito abrangente de Administração Pública, o setor produtivo ansiava por uma declaração de que o regulador só deterá o poder executivo e cautelar de interferir na circulação econômica de produtos no mercado se houver um perigo concreto, um destinatário certo, e um lote de produtos afetado, tudo devidamente motivado, em autêntica atividade administrativa própria do poder de polícia.
O Supremo poderia ter decidido, ainda, de uma vez por todas, se à ANVISA assiste ou não o poder para banir substâncias de forma permanente e geral, e se está autorizada a fazê-lo por meio de simples resolução; poderia, ainda, como parece mais acertado à Confederação Nacional da Indústria (e a cinco dos ministros do STF), ter censurado a agência e afirmado que tal nobre missão está reservada a lei aprovada pelo Congresso Nacional, instituição em que o povo representado é capaz de tomar decisões maduras a propósito de questões moralmente complexas, como a de saber se (e qual) cigarro pode ser consumido no Brasil.
O Supremo não o fez, porém, e não livrou o mercado do cigarro (e outros setores da indústria assolados por questões afins) das dúvidas.
Seja lá como for, o debate constitucional, como visto, permanece aberto nos tribunais e juízos em todo o Brasil, e não há de se encerrar senão depois do moroso caminho da jurisdição comum recursal até uma nova palavra – que se espera seja final, então – do Supremo Tribunal Federal.
A Corte, nos próximos anos, deverá sofrer alteração de composição motivada por aposentadorias compulsórias e, então, será razoável (e quiçá alvissareiro) esperar que um resultado definitivo sobre a questão constitucional suscitada na ADI nº 4.874 seja finalmente proclamado.
Até lá, a indústria tabaqueira nacional não tem alternativa: lutará para que a liberdade econômica e a liberdade de consumo recebam a merecida tutela dos tribunais brasileiros.
Como agente econômica de um produto lícito que integra não só a cultura privada imemorial brasileira, mas até mesmo os signos de identificação política da Nação, é de se esperar que a indústria fumageira não dê anuência a desvio de finalidade regulatória, e, protegida pelas instâncias comuns do Judiciário, envide esforços para que a decisão de adquirir o produto fique a cargo de quem realmente é o seu melhor árbitro: o consumidor, senhor de seu projeto autônomo de vida.
Todos os reguladores somados, afinal, não detêm um só voto e, por essa singela razão democrática, constitucionalmente, não podem falar em nome do povo, fazer escolhas por este, nem tomar as rédeas do seu destino para definir os seus hábitos de consumo, sejam eles politicamente corretos ou não, segundo uma dada visão de mundo.
Em conclusão, as agências, como a CNI vem preconizando em sua Agenda Legislativa, ano após ano, podem e devem ser fortes; especializadas em ordenamentos setoriais, podem e devem conferir estabilidade aos negócios e ao universo das relações por elas reguladas, mas, em igual medida, não se devem deixar capturar por grupos políticos que busquem afastar o debate da saúde pública e do tabaco do seu local natural, que é o Parlamento.
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Alexandre Vitorino Silva é advogado da CNI